sexta-feira, 3 de janeiro de 2020

Conversas e memórias - narrativas do envelhecer


Título: Conversas e memórias – narrativas do envelhecer
Autor: Gonçalo Luiz de Melo e Adriana Rodrigues Domingues
Páginas: 264

O livro nasceu do trabalho realizado por uma psicóloga e um advogado junto a um grupo de idosos em São Paulo. O objetivo é incentivar cada participante a contar trechos de sua vida ao demais integrantes do grupo, fortalecendo o vínculo e melhorando o entrosamento entre os participantes.

O livro não é formado somente pelas histórias, mas por todo o contexto que cerca o projeto, mostrando as várias etapas e as finalidades específicas de cada ação. As histórias são apresentadas da forma mais fiel possível, preservando as singularidades de cada narrador e demonstram, acima de tudo, garra e determinação para superar os obstáculos que a vida lhes apresenta.

Trechos interessantes:

Sempre incentivamos a entrada de novos participantes, a inserção de estagiários ou outros profissionais, a participação de amigos, amigas ou familiares que queiram conhecer o projeto; nesses momentos, convidávamos os frequentadores mais antigos a explicar a proposta aos recém-chegados. Estimulamos, sobretudo, que as relações grupais se estendessem para além do espaço institucional, incentivando-os a visitar os participantes que estavam doentes ou ausentes sem que soubéssemos os motivos, ou a se encontrar no meio do percurso e caminhar juntos até a instituição, ou, ainda, a se encontrar na casa de algum deles para tomar um café. Quando algum participante queria desistir, por qualquer motivo, deixávamos o convite ao retorno sempre disponível e afirmávamos, literalmente, que ele não estava “perdendo a vaga”. (pág. 43)

As histórias contidas no livro Conversas e memórias: fragmentos requerem um jeito especial de apresentação. Não é suficiente resumir cada uma a partir da forma como foram registradas no livro, extraindo trechos, recortando falas, realizando sínteses de cada narrativa para que o leitor possa conhecer algumas poucas e fragmentadas passagens. Também não é suficiente apresentar as minhas próprias anotações, tecidas a partir dos trechos que julgo mais importantes, sem a preocupação de contar como haviam sido relatados. Tanto em uma como em outra forma de apresentação, corro o risco de deixar escapar a riqueza dos acontecimentos, a maneira poética como descrevem suas vidas, os detalhes com que contam uma cena da infância ou as características dos pais e companheiros; corro o risco de, resumindo os acontecimentos, apresentar apenas aquilo que meu olhar e meu interesse foram capazes de enxergar. (pág.100)

A parteira analisou bem a minha barriga e disse: “Olha Elza, eu pensei bem, como é o seu primeiro filho, a gente não pode facilitar. Se acontecer alguma complicação durante o parto nós não temos recursos. Acho melhor a gente ir pro hospital. ” Quando estava saindo, notei que a porta da cozinha da casa dos meus pais, que sempre estava aberta e ficava de frente pra minha sala, com sua cortininha de xadrez verde, agora estava fechada. Ao passar, pelo corredor lateral, vi minha tia Anunciatta, italiana já velhinha, que morava com meus pais nessa mesma casa, com um lenço na cabeça, chorando num canto do quintal. Naquele momento tive a certeza, mas não pude desabafar com ninguém. Antes de ver minha filha nascer, meu pai, o velho Amadeu, já havia ido embora. (pág. 114)

A delicada arte de narrar a própria história requer, contudo, uma delicada arte de reconta-la, apresenta-la em seus acontecimentos e singularidades, esquivando-se do risco de categorizá-las para, em seguida, resumi-las, simplificá-las e interpretá-las. Talvez como um antídoto à perda do valor da narrativa, presente em nosso mundo contemporâneo, o desejo que surgiu em nós de ouvir novamente as histórias e recontá-las em um livro foi produzido pelo próprio efeito de ouvi-las: contá-las de novo para que elas não se percam, para que se gravem o mais profundamente em cada ouvinte e para que este se apodere o mais espontaneamente do dom de narrá-las [...]. (pág. 120)

A velhice costuma apresentar-se como um período em que as recordações emergem com especial energia, e não necessariamente por causa da solidão nem da aposentadoria. Recordar pode ser útil para fazer um balanço ou para tentar entender, ruminando a existência passada. Mas uma recordação nunca terá precisão absoluta a respeito do passado: ela tende a se aproximar da fantasia, em doses maiores ou menores. Ao recordar, nós somos sempre traidores da realidade: tendemos a dar tinturas subjetivas a fatos banais. Nosso primeiro passeio escolar enche-se de coloridos, aventuras, descobertas relacionadas mais às emoções sentidas do que aos fatos reais. (pág. 139)

Em Auschwitz-Birkenau, até hoje se mantêm os antigos campos de concentração nazistas, onde milhares de pessoas foram presas e exterminadas. Para as crianças alemãs de hoje, faz parte do seu aprendizado conhecer esses locais. Os campos recebem gente do mundo inteiro, que costuma se abraçar, mesmo não se conhecendo, em sinal de respeito e solidariedade. Anualmente, peregrinações de judeus de todas as nações ali comparecem para reverenciar os mortos, mas também para contemplar o passado de extraordinária desumanidade e assim atualizar a memória do Holocausto. Depois do ataque atômico americano em 1945, que quase tirou-a do mapa, a cidade de Hiroshima se reconstruiu, mas deixou intactas muitas marcas da destruição. Criou um memorial para celebrar a paz, e se tornou a capital mundial do pacifismo. Todo dia 6 de agosto, milhares de pessoas acorrem à cidade para rememorar a data do ataque, com a finalidade de avivar a lembrança e, assim, garantir que o pesadelo nuclear não se repita. São dois exemplos grandiosos de como é necessário confrontar-se com memórias trágicas que não podemos esquecer. (pág. 140/141)

“A melhor coisa que poderia acontecer na minha vida foi isso, encontrar um lugar, um espaço pra dividir com os outros minhas recordações, não com saudosismo, mas como uma verdade que é sempre presente e é tão bom falar! Tem gente que se arrepende coisas que fez; eu não, se tenho que me arrepender é de muita coisa que não pude fazer. ” (pág. 172)

“Os antigos diziam: casamento é comer um saco de sal juntos! Não sei se no sentido de conservar a união ou temperar a vida. Acho que casei muito cedo, sonhei muito, idealizei tanto que todo o sal acabou sobrando só pra mim. ” (pág. 177)

Ela não voltou mais para Alagoas, mas ainda sonha. Sonhar não lhe custa nada e por isso toda noite pode viajar para o Nordeste sem nenhuma despesa, apenas deixa um copo d’água ao lado da cama, caso no meio da noite o sol do caminho a importune. Se o sonho da mocinha era conhecer as maravilhas do Sul, o da mulher agora é voltar, sem nenhum medo do passado. (pág. 213)

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