sexta-feira, 22 de novembro de 2019

Rio 2054 - Os filhos da revolução


Título: Rio 2054 – Os filhos da revolução
Autor: Jorge Lourenço
Páginas: 376

Em 2054 o Rio de Janeiro não é mais o mesmo. Depois de uma guerra civil, a cidade agora está dividida em Rio Alfa (ou Luzes), onde, é claro, ficam os privilegiados e Rio Beta (ou Escombros), cujo nome não precisa mais de detalhes. Todos os moradores da Rio Beta sonham em, um dia, se mudar para a Rio Alfa. Miguel é uma das exceções. Sem muitas aspirações, prefere ficar por ali e melhorar as condições de vida nos Escombros.

O livro apresenta uma visão apocalíptica da Cidade Maravilhosa. Os moradores da Rio Beta são como bárbaros, tentando a todo custo se manter vivos enquanto a Rio Alfa, controlada por megaempresários, é a visão do paraíso para todo mundo. Robôs, inteligência artificial, máfia japonesa, gangue de motoqueiros e muito mais estão presentes na história. Boa leitura.

Trechos interessantes:

Isolados do resto do Brasil e sem visto para deixarem o Rio de Janeiro, os moradores da Rio Beta tinham poucas opções de ajuda. Ignorados pela abastada Rio Alfa, eles eram obrigados a lidar com o caos e a falta de comida. Uma das poucas ajudas que recebiam era a feira de terça, na qual navios alugados por comerciantes da cidade vizinha de Niterói atracavam no porto para vender alimentos a preços abaixo do mercado e dentro da realidade da pobreza local. (pág. 23)

—Não quero ser um contrabandista, Nina. Não sonho em ir pras Luzes. Nem penso em ir pra lá. Quero juntar dinheiro pra viver bem, e acho que esse negócio de venda de próteses com o Nicolas pode me dar o suficiente pra ter algum conforto. —Ele se calou por algum tempo e olhou no fundo dos olhos esquivos dela. —Seríamos como animais lá, Nina, escravos. Além disso, estaríamos fazendo parte desse ciclo de dominação.
—Mas a vida é assim. Ou você domina, ou é dominado — ela disse, desviando do seu olhar e mirando o chão. Desconfiou que Nina estivesse tentando conter o choro, mas ela continuou a falar. —E você quer viver nessa miséria pra sempre? A gente vive no cu do mundo, Miguel. O que a gente vive não é nem perto do que os mais pobres dos mais pobres vivem lá. (pág. 29)

—A vida não acerta nada, Nina. É a gente que aprende a lidar com a decepção. (pág. 33)

—As pessoas sempre usavam umas às outras em benefício próprio, fosse no amor ou na guerra, para se confortar ou para se defender. (pág. 76)

Dentro de sua cabeça, um emaranhado de caminhos tortuosos que sempre passavam por Nina e terminavam em Alice se formou. Sua ex-namorada era como parte dele, uma extensão de seu corpo sem a qual se sentia desfigurado. O problema é que, com o tempo, aquela extensão tinha mudado tanto a ponto de não conhecê-la mais. O que os ligava não era mais o amor, nem a amizade. Da parte dele, a única esperança que tinha era de que um dia ela voltaria a ser como antes, mas o que acontecia era exatamente o oposto. A estrada do amadurecimento os levou para direções opostas, tão distintas que às vezes se sentiam como estranhos um ao lado do outro. (pág. 104)

—Missão Cristã, hein? Ajudam muito vocês?
—Acho que lá no fundo nós é que ajudamos. Eles se sentem menos culpados depois de fazer uma ou duas visitas, raramente aparecem mais do que isso.
—A hipocrisia nunca morre. Essa é a verdade. (pág. 124)

Rotulado como bandido nas ruas pacatas do Andaraí, viu em Miguel o único amigo que não saiu do seu lado, o único que não julgou suas atitudes. Ele não concordava com seu novo estilo de vida, mas fazia questão de manter viva a amizade que conservavam desde pequenos. Era seu irmão, seu pilar e o único em quem confiava quando a situação apertava. (pág. 175)

[...] Kazuo sentiu que finalmente sua hora tinha chegado. Capaz de driblar tropas israelenses num ataque a uma embaixada local, assassinar um membro da SAS no centro de Londres e encurtar a carreira de um senador americano com uma bala no meio de uma convenção do Partido Democrata, cair para um grupo de narcotraficantes remelentos com cara de mendigos numa favela que mais parecia um lixão a céu aberto o revoltava. Trabalhara sempre com a perspectiva da morte, mas esperava encontrá-la com um pouco mais de glória. (pág. 190)

—Não sei explicar, mas as músicas falam de maneira diferentes comigo. Uma música romântica parece conversar com minhas paixões. Um rock pesado fala com a minha rebeldia, minhas frustrações. Algumas, no entanto, parecem dialogar diretamente com a minha alma. Quando escuto Debussy ou algo mais clássico, é como se as notas falassem com toda a minha existência. Eu sinto o coração pesado de admiração. (pág. 204)

—[...] A aceitação de dúvidas e questionamentos é aliada do conhecimento. Pelo menos essa é a conclusão que tiro da minha base de dados. Alguém certo da existência de um deus ou de uma inteligência superior, por exemplo, jamais levaria em conta afirmações contrárias e se fecharia para aquele tipo de conhecimento. O mesmo serve para o contrário. Um ateu excessivamente convicto descartaria evidências de eventos sobrenaturais, por mais claros que eles fossem. A dúvida é aliada do conhecimento. (pág.206)

—[...] Mesmo quem não acredita em macumba tem medo dela. É uma religião interessante. (pág. 213)

“O Nicolas vivia em cima de um castelo de cartas montado pelas próprias mentiras, Miguel. E já estava tão no alto que não conseguia mais descer. Ele mentia para você sobre as próteses, para a Nina, para mim, para os clientes, até para si próprio. Ele nunca esteve nem aí para ninguém, só para a ideia fixa de pegar a sua ex-namorada e levá-la numa viagem só de ida para os Escombros. Ele tinha até um bom objetivo, gostava dela, mas seguia todos os meios errados”. (pág. 288)

“Você não tem ideia de como as pessoas vivem nas Luzes e no resto do mundo. Nós vivemos hoje numa sociedade voltada para um bem-estar inalcançável, sempre atrás de uma felicidade que nunca vem. Trabalhamos em escalas cada vez mais árduas para manter o status social de um bom emprego, gastamos todo o nosso dinheiro com coisas que nós não precisamos e esperamos um momento de paz de espírito que nunca chega, a promessa de sucesso definitivo que nunca é cumprida. Diariamente, somos bombardeados por uma quantidade tão grande de informação que nossos cérebros estão entrando em curto”. (pág. 290)

“Como a humanidade é mesquinha”, pensou. “Conseguimos viver nossa ilusão de segurança normalmente enquanto tem gente passando fome bem do nosso lado. Atribuímos o bem-estar ao nosso trabalho, ao merecimento ou até à sorte. E não abrimos mão disso”. (pág.330)