terça-feira, 14 de janeiro de 2020

A casca da serpente


Título: A casca da serpente
Autor: José J. Veiga
Páginas: 160

O autor nos apresenta uma história de Canudos, mas de forma “retificada”. Nessa versão Antônio Conselheiro não morre, mas, sim, troca de lugar com um morto e, com isso, consegue despistar as tropas da polícia que, ansiosas para encerrar a caçada, aceitaram o corpo apresentado como o de Conselheiro. Enquanto isso Conselheiro, ajudado por poucos, mas fiéis colaboradores, foge com a ideia de fundar uma nova Canudos.

Agora é preciso convencer as pessoas de que Conselheiro está vivo, o que não se mostrará uma tarefa fácil. E ele, como líder, deve agora avaliar o que não deu certo em Canudos para não repetir no novo arraial a ser criado.

A ideia é interessante e o desenrolar da história é bem agradável. Livro pequeno, com uma linguagem típica da região, o que faz com que a leitura avance rapidamente e de forma prazerosa.

Trechos interessantes:

Mais uma vez Bernabé viu no olhar do Conselheiro, que até então parecia alheio a tudo, afundado em seus pensamentos ou em suas orações, viu aquele mesmo olhar de aprovação de antes, o que o fez pensar que o velho, atrás daquela cortina de sonolência e desinteresse, estava era muito atento ao que se passava em volta. Podia ser então que quando ele parecia distraído, cochiloso, caducante, era porque tinha se acendido para o lado de dentro e entrado em comunicação com alguma força invisível para os outros e da qual recebia sustento para a alma e para o corpo. (pág. 21)

Mas não podiam negar que a presença do Conselheiro era uma espécie de grude forte, que segurava todos; sem ele nem estariam ali. Era ele quem traçava o rumo, dizia o que era acertado fazer, o que era perigoso. Sem ele o bando desfacelava, tantos seriam os desafinos. Ele tinha um jeito de influir nas pessoas para elas o respeitarem de vontade própria, sem que ele precisasse falar grosso. Falar grosso aliás não resolve emperrações, a pessoa que recebe o ronco obedece se não tem outro jeito, mas fica de sobreaviso; e na primeira vaza em que pega o outro em quebra, vai à forra com juros. Grito impõe obediência, mas não impõe respeito. (pág. 26)

Disse há pouco que era preciso evitar os erros de Canudos, formar outro arraial mais voltado para as necessidades das pessoas, não se perdendo tanto tempo com rezas. No novo arraial ia-se rezar, claro, mas não como em Canudos. As rezas agora iam ser entoadas em agradecimento e regozijo, não mais para pleitear graças impossíveis. Porque de duas uma, falou o Conselheiro: ou o castigo é merecido, e decorre de alguma lei superior que não foi observada, e nesse caso nem Deus pode abrir exceção; ou é injusto. Mas considerar um castigo injusto é blasfêmia do castigado; pois não sabe ele que Deus é justo? Então é perda de tempo rezar pedindo abertura de buracos no pano da lei. Se uma pessoa ou um povo tem direito a um benefício, não será ofensa a Deus, ou no mínimo impertinência, estar cutucando ele com rezas para ele não se esquecer de deferir um direito? (pág. 27)

Aquele era um assunto que precisava ser resolvido o quanto antes. A posição dele agora era como a de um carreiro que pretende mudar de caminho, mas para isso precisa recuar os bois. Boi de carro não sabe andar para trás. Parar o carro era o que ele tentava fazer como primeira medida. Depois uma temporada de descanso para os homens esgotarem o impulso interior de movimento, como acontece com os bois de carro, até eles ficarem impacientes para andar de novo. E durante a parada, aquela doutrinação sistemática e sutil para os induzir a aceitarem o novo caminho. (pág. 51)

Onde seria esse mundo novo, ele não sabia ainda, e não tinha pressa de saber. Em toda a sua vida ele nunca fizera planos precisos para o futuro, nem se impacientara com a aparente lentidão da natureza e do mundo. Mesmo antes de conhecer as palavras do pregador, já achava que tudo tem o seu tempo, e que para todo propósito há um tempo e um modo. Que adianta querer apressar o amadurecimento do ouricuri, ou o dia do primeiro voo do carcará? Desde cedo se habituara a acreditar no destino, para ele uma espécie de desígnio que a pessoa recebe ao nascer e que terá de cumprir queira ou não. Assim, para que ter pressa? Vamos com os ventos, eles sabem o rumo. (pág. 55)

O sonho de viver em lugares altos nasceu com a humanidade. Mas sempre esbarrou em dificuldades que só aparecem quando o sonhador começa a pôr em prática o que sonhou. Essas dificuldades não são poucas, nem pequenas, nem fáceis de contornar – tanto que não há muitas cidades altas na história. Fortalezas e castelos sim, mas não cidades. Se a altura é vantagem contra assaltos, é também gravame em caso de cerco. Depois, lugar alto n]ao tem variedade de material de construção, o que falta precisa ser levado para cima a força de braços e costas, um desgaste de energia que renderia melhor se aplicado na construção propriamente. E o de comer? E o de beber? Água não gosta de subir morro. Só em sonho a vida no alto é amena. E tem ainda a lei da gravidade, que nunca descansa no empenho de puxar tudo para baixo o tempo todo. Não foi por acaso que nossos antepassados remotos desistiram de viver em cima de árvore. (pág. 76/77)

Quem carrega arma para onde vai, parece que a presença dela, o peso, o incômodo mesmo, acabam dando ao portador alguma certeza de que está garantido e forrado, de que está por cima. E mais: essa certeza parece que dá na pessoa que carrega arma uma coceira, uma vontade de recorrer à arma ao menor pretexto, como para justificar a posse dela – se não é para usar, por que carrego isso? Já as pessoas que nesta vida só querem viver sem estorvar a vida dos outros, essas não têm fascinação pelo carreto de armas. Elas acreditam e confiam mais na inteligência e na parlamentação. (pág. 90)

—Olha, seu Joaquim. Falta de alguém eu já senti muito, porém foi de minha mãe. Mas faz tanto tempo que perdi ela, que já me acostumei. Hoje em dia só sinta falta é de um fuminho cheiroso quando não tenho, de um pedaço de toicinho pra temperar um feijão, de um punhadinho de açúcar pra adoçar o café, essas coisas miúdas que a gente aprende a apreciar e cujas aprende também a abrir mão quando vasqueiam. (pág. 125)

A música tem muito a ver com magia, e deve corresponder a um anseio íntimo do ser humano desde o princípio, uma saudade de qualquer coisa que ficou longe, nas origens talvez cósmicas. O troglodita que primeiro bateu com um pau ou um osso numa superfície dura procurava alguma coisa que lhe fazia falta e que ele não sabia o que era. Bateu, procurando, encontrou: era o som feito pelo homem. O som primeiro nasceu no íntimo, como necessidade, e tinha de ser encontrado. Encontrado, passou a existir. Onde não existe, é reinventado. Ou redescoberto. (pág. 136)

Quanto aos lápis, é curioso o que acontece. Depois que o João Faber o inventou, nunca faltou lápis no mundo. Por mais que se perca, ou se mastigue, ou se quebre, ou se empreste, ou se desvie para coleções, ainda fica lápis sobrando. Em qualquer casa, por mais distante ou isolada, abre-se uma gaveta procurando uma tesoura, um botão, um comprimido, encontra-se um lápis ou dois. Vai-se limpar embaixo de um móvel, olha lá um lápis esquecido. Até parece que eles se reproduzem. Se duvidar, há mais lápis do que gente no mundo. E quando esta nossa civilização acabar, e ficar esquecida, e depois começar a ser escavada, os arqueólogos vão quebrar a cabeça para descobrir para que serviam esses artefatos, e poderão até ser considerados objetos rituais. Se um dia faltar madeira para revesti-los, não tenham dúvida que outro material será descoberto para substituí-la; o que não pode é faltar lápis. (pág. 148/149)

sexta-feira, 3 de janeiro de 2020

Conversas e memórias - narrativas do envelhecer


Título: Conversas e memórias – narrativas do envelhecer
Autor: Gonçalo Luiz de Melo e Adriana Rodrigues Domingues
Páginas: 264

O livro nasceu do trabalho realizado por uma psicóloga e um advogado junto a um grupo de idosos em São Paulo. O objetivo é incentivar cada participante a contar trechos de sua vida ao demais integrantes do grupo, fortalecendo o vínculo e melhorando o entrosamento entre os participantes.

O livro não é formado somente pelas histórias, mas por todo o contexto que cerca o projeto, mostrando as várias etapas e as finalidades específicas de cada ação. As histórias são apresentadas da forma mais fiel possível, preservando as singularidades de cada narrador e demonstram, acima de tudo, garra e determinação para superar os obstáculos que a vida lhes apresenta.

Trechos interessantes:

Sempre incentivamos a entrada de novos participantes, a inserção de estagiários ou outros profissionais, a participação de amigos, amigas ou familiares que queiram conhecer o projeto; nesses momentos, convidávamos os frequentadores mais antigos a explicar a proposta aos recém-chegados. Estimulamos, sobretudo, que as relações grupais se estendessem para além do espaço institucional, incentivando-os a visitar os participantes que estavam doentes ou ausentes sem que soubéssemos os motivos, ou a se encontrar no meio do percurso e caminhar juntos até a instituição, ou, ainda, a se encontrar na casa de algum deles para tomar um café. Quando algum participante queria desistir, por qualquer motivo, deixávamos o convite ao retorno sempre disponível e afirmávamos, literalmente, que ele não estava “perdendo a vaga”. (pág. 43)

As histórias contidas no livro Conversas e memórias: fragmentos requerem um jeito especial de apresentação. Não é suficiente resumir cada uma a partir da forma como foram registradas no livro, extraindo trechos, recortando falas, realizando sínteses de cada narrativa para que o leitor possa conhecer algumas poucas e fragmentadas passagens. Também não é suficiente apresentar as minhas próprias anotações, tecidas a partir dos trechos que julgo mais importantes, sem a preocupação de contar como haviam sido relatados. Tanto em uma como em outra forma de apresentação, corro o risco de deixar escapar a riqueza dos acontecimentos, a maneira poética como descrevem suas vidas, os detalhes com que contam uma cena da infância ou as características dos pais e companheiros; corro o risco de, resumindo os acontecimentos, apresentar apenas aquilo que meu olhar e meu interesse foram capazes de enxergar. (pág.100)

A parteira analisou bem a minha barriga e disse: “Olha Elza, eu pensei bem, como é o seu primeiro filho, a gente não pode facilitar. Se acontecer alguma complicação durante o parto nós não temos recursos. Acho melhor a gente ir pro hospital. ” Quando estava saindo, notei que a porta da cozinha da casa dos meus pais, que sempre estava aberta e ficava de frente pra minha sala, com sua cortininha de xadrez verde, agora estava fechada. Ao passar, pelo corredor lateral, vi minha tia Anunciatta, italiana já velhinha, que morava com meus pais nessa mesma casa, com um lenço na cabeça, chorando num canto do quintal. Naquele momento tive a certeza, mas não pude desabafar com ninguém. Antes de ver minha filha nascer, meu pai, o velho Amadeu, já havia ido embora. (pág. 114)

A delicada arte de narrar a própria história requer, contudo, uma delicada arte de reconta-la, apresenta-la em seus acontecimentos e singularidades, esquivando-se do risco de categorizá-las para, em seguida, resumi-las, simplificá-las e interpretá-las. Talvez como um antídoto à perda do valor da narrativa, presente em nosso mundo contemporâneo, o desejo que surgiu em nós de ouvir novamente as histórias e recontá-las em um livro foi produzido pelo próprio efeito de ouvi-las: contá-las de novo para que elas não se percam, para que se gravem o mais profundamente em cada ouvinte e para que este se apodere o mais espontaneamente do dom de narrá-las [...]. (pág. 120)

A velhice costuma apresentar-se como um período em que as recordações emergem com especial energia, e não necessariamente por causa da solidão nem da aposentadoria. Recordar pode ser útil para fazer um balanço ou para tentar entender, ruminando a existência passada. Mas uma recordação nunca terá precisão absoluta a respeito do passado: ela tende a se aproximar da fantasia, em doses maiores ou menores. Ao recordar, nós somos sempre traidores da realidade: tendemos a dar tinturas subjetivas a fatos banais. Nosso primeiro passeio escolar enche-se de coloridos, aventuras, descobertas relacionadas mais às emoções sentidas do que aos fatos reais. (pág. 139)

Em Auschwitz-Birkenau, até hoje se mantêm os antigos campos de concentração nazistas, onde milhares de pessoas foram presas e exterminadas. Para as crianças alemãs de hoje, faz parte do seu aprendizado conhecer esses locais. Os campos recebem gente do mundo inteiro, que costuma se abraçar, mesmo não se conhecendo, em sinal de respeito e solidariedade. Anualmente, peregrinações de judeus de todas as nações ali comparecem para reverenciar os mortos, mas também para contemplar o passado de extraordinária desumanidade e assim atualizar a memória do Holocausto. Depois do ataque atômico americano em 1945, que quase tirou-a do mapa, a cidade de Hiroshima se reconstruiu, mas deixou intactas muitas marcas da destruição. Criou um memorial para celebrar a paz, e se tornou a capital mundial do pacifismo. Todo dia 6 de agosto, milhares de pessoas acorrem à cidade para rememorar a data do ataque, com a finalidade de avivar a lembrança e, assim, garantir que o pesadelo nuclear não se repita. São dois exemplos grandiosos de como é necessário confrontar-se com memórias trágicas que não podemos esquecer. (pág. 140/141)

“A melhor coisa que poderia acontecer na minha vida foi isso, encontrar um lugar, um espaço pra dividir com os outros minhas recordações, não com saudosismo, mas como uma verdade que é sempre presente e é tão bom falar! Tem gente que se arrepende coisas que fez; eu não, se tenho que me arrepender é de muita coisa que não pude fazer. ” (pág. 172)

“Os antigos diziam: casamento é comer um saco de sal juntos! Não sei se no sentido de conservar a união ou temperar a vida. Acho que casei muito cedo, sonhei muito, idealizei tanto que todo o sal acabou sobrando só pra mim. ” (pág. 177)

Ela não voltou mais para Alagoas, mas ainda sonha. Sonhar não lhe custa nada e por isso toda noite pode viajar para o Nordeste sem nenhuma despesa, apenas deixa um copo d’água ao lado da cama, caso no meio da noite o sol do caminho a importune. Se o sonho da mocinha era conhecer as maravilhas do Sul, o da mulher agora é voltar, sem nenhum medo do passado. (pág. 213)