quinta-feira, 27 de dezembro de 2018

Anos de ternura



Título: Anos de ternura
Autor: A. J. Cronin
Páginas: 340

Livro antigo, bem gasto, folhas se soltando e prejudicando muito a leitura. Não achei outro em melhor estado e, como gosto do autor, encarei a leitura assim mesmo. Por ser uma edição muito antiga, a gramática do livro é bem diferente da atual, principalmente no tocante às palavras acentuadas. Mas nada que torne inviável a leitura.

A história retrata a infância de Robert Shannon, um jovem que perdeu os pais e é obrigado a ir morar com os avós maternos. A dificuldade em se adaptar aos novos costumes, sem amigos, problemas financeiros e as diferenças de religião são os desafios que o jovem terá que superar para concluir com afinco e dedicação esta etapa de sua vida. É uma história singela, cheia de simplicidade, mas muito tocante.

Trechos interessantes:

A verdade, embora eu não pudesse atinar com eia, era simples. Naquela cidadezinha escocesa, cheia de preconceitos, era ponto pacífico que minha mãe, moça bonita e estimada, “que poderia ter escolhido a quem quisesse” se desmoralizara casando com meu pai, Owen Shannon. Tratava-se de um estranho que ela encontrara durante as férias, um sujeito de Dublin, que não tinha parentes, ocupava um lugar insignificante numa firma de importadores de chá e não possuía a recomenda-lo senão a inteligência e a beleza — se tais atributos podem ser uma recomendação. Ninguém levara em conta os anos de felicidade que se seguiram ao casamento. A morte de meu pai, seguida sensacionalmente pela da mulher, era considerada como uma consequência justa; e o meu aparecimento à porta dos Leckie, sem um níquel de meu, era uma prova certa do julgamento da Providência. (pág. 26)

—Não tenho nada contra os católicos — a não ser, talvez, contra os papas. Não, rapaz, não posso dizer que aprove os seus papas... Aqueles Borgias, que usavam anéis envenenados e outras coisas por aí, não me parecem bons tipos. Contudo, não falemos nisso, que você não pode ser culpado; você acredita na mesma Providência em que sua avó acredita, embora ela não consinta que você a adore por meio de velas e de incenso. Pois bem, eu aprovo, rapaz. Aprovo. Vou defender o seu direito de ser católico. E ainda lhe digo mais: você terá tanta possibilidade de entrar no Portão Celeste — ou qualquer que seja o portão, com sua missa e seus paramentos – quanta probabilidade tem ela de lá entrar com os salmos e a Bíblia. (pág. 97)

— Notável! Exclamou, pensativo. Creio que vou comungar com você. Será uma experiência interessantíssima.
–Oh, não, não, Vovô! bradei, assombrado. O senhor assim vai cometer um pecado, um pecado mortal. Primeiro tem que se confessar... contar ao Conego Roche todas as coisas ruins que fez durante a vida inteira.
– Isso, Robert, disse ele com brandura—seria uma conversa por demais longa. (pág. 100)

Compreendi então que o interesse do homem fora meramente científico; aquela estranha,bela e inteiramente desinteressada emoção que já me possuíra quando me sentava ao microscópio e que, anos mais tarde, me iria proporcionar algumas das raras alegrias de minha vida. Nesse momento, sentindo em mim uma espécie de parentesco racial e ideológico com aquele taciturno escocês, não pude reprimir um estremecimento de orgulho por ele. Quão perfeita fora a sua atitude no meio daqueles meridionais alvoroçados. (pág. 127/128)

Através da sua vida inteira, Vovô sonhara em fazer coisas heroicas e maravilhosas, —e com tal intensidade o desejava, que no fim da vida chegou a acreditar realmente que as realizara. A sua carreira, infelizmente, fora uma trapalhada. Tivera antepassados ricos; seu pai, associado a dois tios, fora proprietário de uma conhecidíssima destilaria em Glen Nevis. Num álbum de família dei certa vez com a amarelada fotografia de um moço, de pé, com um fuzil na mão e dois cães perdigueiros ao lado, nos degraus de entrada de uma imponente casa de campo. Imagine-se minha estupefação quando Mamãe me disse que aquele moço era Vovô; a mansão era a sua; e Mamãe acrescentou, com um sorriso débil e um suspiro:
— No tempo deles, os Gow foram gente importante, Robie. (pág. 147/148)

O meu professor era um moço de trinta e dois anos, de corpo robusto que irradiava uma contida vitalidade; no beiço superior tinha uma cicatriz – linha branca em diagonal cortada de pequenos traços transversais, distribuídos simetricamente, onde haviam sido dados os pontos. Essa cicatriz, que eu supunha o resultado de uma operação de lábio leporino, parecia que lhe puxava o nariz para baixo, dando-lhe um jeito chato, sem osso, alargando-lhe as narinas; chegava mesmo a tornar proeminentes os olhos azuis — quase esbugalhados, por sob o macio cabelo louro. Tinha a pele clara, meio úmida, pois transpirava com facilidade; raspava a barba toda, desdenhando de ocultar com um bigode o lábio ligeiramente desfigurado — como se enfrentasse com desprezo a crueldade ou a vulgar curiosidade dos seus semelhantes. De qualquer modo, a fala o haveria de trair, certa articulação imperfeita que só se consegue imitar com exatidão achatando-se a língua contra a abóbada palatina; todos os SS brandos ficavam sibilantes em sua boca; e por culpa disso conquistara Mr. Reid o seu apelido, quando nos falara dos Argonautas, a propósito da terceira Ode de Píndaro, e referia-se com entusiasmo a “Jason”. (pág. 165/166)

Só depois que caí nas mãos de Jason senti a tépida atmosfera do interesse pessoal. Foi ele o primeiro a considerar o meu gosto por história natural como –algo mais do que brinquedo. Bem me lembro de como esse seu interesse se demonstrou pela primeira vez: era um dia de verão e um casal de borboletas azuis entrou voando pela janela da sala de aula; nós todos paramos de trabalhar, afim de olhá-las.
— Porque andam emparelhadas? — Jason Reid fazia a pergunta indolentemente, tanto para si próprio como aos alunos.
Houve silêncio, depois ouviu-se a minha modesta voz:
— Porque são macho e fêmea, professor.
O olhar esbugalhado e satírico de Jason fixou-se em mim:
— Seu prato de mingau azedo, você quer insinuar que borboletas têm vida amorosa?
— Sim senhor. Elas são capazes de descobrir o seu par até a uma milha de distância, graças a uma fragrância particular, com cheiro de verbena, que é segregada pelas glândulas que têm na epiderme. (pág. 167/168)

Toda a minha meninice em Lomond View foi dominada por uma lei monstruosa: a necessidade de economizar dinheiro, mesmo ante o sacrifício das legitimas necessidades da vida. Ah, se a gente pudesse se arranjar sem dinheiro, sem aquela economia nortista que prefere dinheiro no banco a uma boa refeição no estômago, que põe fidalguia adiante de generosidade, sem esta maldita avareza que nos resseca!
Quando a questão do dinheiro me atormentava e desorientava, eu pensava em Jamie Nigg. Jamie nunca foi abastado; mas quer o gastasse num bom bife, quer levasse ao jogo de futebol um pobre garoto solitário, Jamie sempre fazia bom uso do seu dinheiro suadamente ganho, e—melhor ainda — todo dinheiro em que ele tocasse, dava a impressão de ser limpo. (pág. 175/176)

Saí para a tarde cor de cinza. No fim da semana não voltei ao presbitério. Minha ousadia em desafiar assim o Conego Roche assustava-me. Mas as sementes da rebeldia cresciam rapidamente no meu peito. Se Deus não queria permitir que eu fosse um cientista, não via razão para me curvar diante dele e me fazer padre. Qualquer outra coisa me parecia melhor que isso; — aliás, sob as atuais circunstâncias, a perspectiva de ir trabalhar na Fábrica parecia ter uma atração especial. Frustrado, cheio de amargura, acomodando-me a ideias novas e terríveis, era o meu incessante desejo submeter-me ao pior que me reservasse a sorte. E,acima de tudo, eu queria mostrar que não me importava com mais nada. (pág. 249/250)

— [...] Frequentava o curso noturno de Paxton, na Politécnica de Londres, e passava os domingos todos cascavilhando os lagos de Surrey. Pensava que seria um dia um novo Cuvier. Isso já foi há mais de trinta anos. E veja agora o que é feito de mim. Estou mergulhado na rotina até aos cabelos. Ganho cinquenta shillings por semana e tenho uma mulher doente a sustentar. – Chupou o cigarro, pensativo: — Procurei entrar pela porta dos fundos — a única que me estava aberta. Não adianta, filho. Se você quiser chegar a coronel do regimento não sente praça como soldado raso. Fiquei como atendente de laboratório a vida inteira. (pág. 283)

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