terça-feira, 31 de julho de 2018

Um ano na Provence



Título: Um ano na Provence
Autor: Peter Mayle
Páginas: 240

Relato de um casal inglês que resolveu se mudar para a região provençal no sul da França. Considerado um dos lugares mais charmosos do mundo, a Provence sempre atrai muitos turistas de todas as nacionalidades, fugindo do inverno e ávidos por um pouco de sol. Peter, um ex-publicitário, resolveu contar sua experiência de se adaptar à nova morada, sempre de uma forma muito irônica e agradável de ler.

O livro é dividido em 12 capítulos, cada um relatando sobre um mês e suas características peculiares. Aqui se comenta o processo de adaptação à nova cultura, os vizinhos, problemas com reformas e com os trabalhadores, problemas com hóspedes e, principalmente, muita coisa relacionada à gastronomia e cultura local. Sem dúvida, uma ótima leitura.

Trechos interessantes:

“Descobrimos que no campo os vizinhos assumem uma importância que nem de longe têm nas cidades. Alguém pode morai anos num apartamento em Londres ou Nova York e mal falar com as pessoas que morara a 15 centímetros de distância, do outro lado de uma parede. No interior, porém, mesmo que você esteja separado da outra casa por centena de metros, os vizinhos fazem parte da sua vida, e você, da deles.” (pág. 10)

“Enquanto isso, alguns milhares de quilômetros ao norte, o vento que tinha começado na Sibéria estava ganhando velocidade para a parte final de sua viagem. Já tínhamos ouvido histórias sobre o mistral. Ele enlouquecia as pessoas e os animais. Era uma circunstância atenuante em crimes violentos. Soprava quinze dias sem parar, arrancando árvores, virando automóveis, quebrando janelas, jogando velhinhas na sarjeta, destroçando postes telegráficos, uivando pelas casas como um fantasma frio e maligno, causando la grippe, brigas domésticas, feitas no trabalho, dores de dente, enxaquecas. Todo problema na Provence cuja culpa não pudesse ser atribuída aos políticos era decorrente do sâcré vent, do qual os provençais falavam com uma espécie de orgulho masoquista.” (pág. 13)

“A morte de um morador faz surgir pequenos avisos pesarosos, que são expostos nas janelas de lojas e de casas. O sino da igreja dobra, e uma procissão trajada com formalidade incomum segue vagarosa na direção do cemitério, que costuma se situar num os pontos mais altos do povoado. Um velho explicou o motivo para essa localização.
– Os mortos têm direito à melhor vista porque vão ficar por lá muito tempo – disse ele, rindo tanto da própria piada que teve um acesso de tosse e fez com que eu me preocupasse com a possibilidade de haver chegado a sua vez de ir se juntar a eles.
Quando lhe falei do cemitério na Califórnia em que se paga mais por um túmulo com vista do que por acomodações mais modestas, ele não se surpreendeu nem um pouco.
– Sempre haverá tolos, mortos ou vivos – concluiu.” (pág. 38/39)

“Aprendemos que o tempo na Provence é um artigo muito elástico, mesmo quando descrito em tomos claros e específicos. Un petit quart d’heure [daqui a quinze minutinhos] significa em algum momento no dia de hoje. Demain [amanhã] significa em algum dia desta semana. E, o segmento mais elástico de todos, une quinzaine [daqui a quinze dias] pode querer dizer três semanas, dois meses ou no ano que vem, mas nunca, jamais, em tempo algum representa o período de quinze dias. Aprendemos, também, a interpretar a linguagem dos gestos que acompanha qualquer conversa sobre prazos. Quando um provençal o encarar e lhe disser que baterá à sua porta pronto para começar o trabalho na terça-feira que vem sem falta, o comportamento das mãos dele é de importância vital. Se estiverem paradas ou lhe dando tapinhas de confirmação no braço, você pode esperá-lo na terça. Se uma das mãos estiver estendida à altura da cintura, com a palma para baixo, e começar a balançar para lá e para cá, corrija a data para quarta ou quinta-feira. Se esse movimento da mão apresentar um tremor agitado, ele na realidade está falando na semana seguinte ou só Deus sabe quando, dependendo de circunstâncias fora do seu controle.” (pág. 54)

“No que diz respeito a todos os produtos comestíveis na França, certas regiões têm a reputação de produzir os melhores – as melhores azeitonas são de Nyons; a melhor mostarda, de Dijon; os melhores melões, de Cavaillon; o melhor creme de leite, da Normandia. Segundo a opinião geral as melhores trufas vêm do Périgord, e é natural que se pague mais por elas. Mas como saber se a trufa comprada em Cahors não foi desenterrada a centenas de quilômetros dali, no Vaucluse? A menos que você conheça seu fornecedor e confie nele, não poderá ter certeza. E, pelas informações privilegiadas de Ramon, 50% das trufas vendidas no Périgord haviam nascido em outras regiões e sido ‘naturalizadas’.” (pág. 71)

“Quando entramos em casa, o telefone estava tocando. É um som que nós dois detestamos, e sempre damos desculpas para ver quem consegue evitar atende-lo. Temos um pessimismo inato diante de telefonemas. Eles têm o hábito de ocorrer em horas inconvenientes e de ser por demais repentinos, lançando a pessoa que atende numa conversa que ela não estava esperando. Já as cartas são um verdadeiro prazer, especialmente por permitirem que se reflita sobre a resposta. Só que hoje as pessoas já não escrevem cartas. Ou são muito ocupadas, têm muita pressa ou dizem não confiar nos correios, desdenhando o serviço que consegue entregar as contas com uma precisão infalível.” (pág. 73)

“É uma lei da natureza que, quando o telefone toca entre o meio-dia e as três da tarde num domingo, quem chama só pode ser um inglês. Jamais passaria pela cabeça de um francês interromper a refeição mais descontraída da semana.” (pág. 84)

“Estávamos descobrindo como era viver quase o tempo todo com hóspedes. A primeira leva havia chegado para a Páscoa, e outras tinham reservas até o final de outubro. Convites meio esquecidos, feitos na distante segurança do inverno, agora manifestavam seu efeito trazendo hóspedes à procura de abrigo, bebida e banhos de sol. A moça da lavanderia supôs, pela quantidade dos nossos lençóis, que estávamos no ramo hoteleiro, e nos lembramos dos avisos de moradores mais experientes.” (pág. 105)

“O instrumento para advertências e discussões é o dedo indicador, numa de suas três posições de funcionamento. Espetado para o alto, rígido e imóvel, abaixo do nariz do interlocutor, ele recomenda precaução: cuidado, attention, nem tudo é o que parece ser. Mantido logo abaixo do nível do rosto e agitado rapidamente de um lado para outro como um metrônomo nervoso, ele indica que o interlocutor está tragicamente desinformado e totalmente enganado no que acabou de dizer. A opinião correta é, então, apresentada, e o dedo deixa o movimento de um lado para outro, passando para uma série de investidas e cutucadas, seja tocando o peito se a pessoa carente de esclarecimentos for homem, seja permanecendo a alguns discretos centímetros do tórax caso se trate de uma mulher.” (pág. 119)

“Quando um inglês está num coquetel, a taça fica firmemente aparafusada à sua mão, enquanto ele conversa, fuma ou come. É só com relutância que ele põe a taça de lado, para atender a necessidades que exijam as duas mãos, como assoar o nariz ou ir ao banheiro. Mas ela nunca fica muito longe ou fora do seu campo visual.
Com os franceses, é diferente. Mal eles recebem uma taça e já a deixam em algum lugar, supostamente por considerarem difícil conversar com uma única mão livre. É assim que as taças vão se reunindo em grupos, e depois de cinco minutos é impossível sua identificação. Os convidados, sem querer apanhar a taça de outra pessoa mas incapazes de determinar qual é a sua, lançam olhares compridos para a garrafa de champanhe. Novas taças são distribuídas, e o processo se repete.” (pág. 232)

“Acordamos para uma manhã de sol, o vale deserto e silencioso, e nossa cozinha sem eletricidade. O pernil de cordeiro que estava pronto para ser levado ao forno foi adiado; e nós encaramos a possibilidade apavorante de comer pão e queijo no almoço de Natal. Todos os restaurantes da região já estariam com suas reservas esgotadas havia semanas.
É em horas semelhantes, quando a crise ameaça o estômago, que os franceses exibem o lado mais solidário de sua natureza. Conte-lhes histórias de lesões físicas ou desastres financeiros, e eles vão rir ou demonstrar uma compaixão educada. Conte-lhes, porém, que está enfrentando alguma dificuldade de ordem gastronômica, e eles moverão céus e terra, e até mesmo mesas de restaurante para ajudá-lo.” (pág. 236)

terça-feira, 24 de julho de 2018

Você está aqui



Título: Você está aqui
Autor: Christopher Potter
Páginas: 358

Nada como um livro desses para jogar um balde de água fria na ilusão do ser humano de se achar superior a tudo. Aqui se consegue perceber a transitoriedade e diminuta importância da raça humana. O que é o ser humano comparado com a vastidão do cosmos?

O livro discute a eterna dúvida do ser humano: ‘de onde viemos e para onde vamos?’, pergunta esta que não tem sentido ou talvez nunca seja respondida. Vários assuntos são abordados como o tempo de existência do universo, dimensão e existência de outros universos, tempo de vida do nosso sol, dimensão do átomo e suas partículas, surgimento da vida e vários outros temas que o ser humano anseia desesperadamente por respostas. Haverá resposta?

Trechos interessantes:

“Se o Universo inclui tudo o que existe, onde ele está incluído? Agora sabemos, nos dizem os cientistas, que o Universo visível é uma região de radiação que evoluiu e que não está incluída em parte alguma. Mas essa descrição levanta perguntas ainda mais perturbadoras que a pergunta que esperávamos fosse respondida em primeiro lugar, e por isso logo colocamos o Universo de volta em sua caixa e tentamos pensar em alguma outra coisa.” (pág. 12)

“Os seres humanos estão numa enroscada. Por um lado sabemos que existe alguma coisa, pois todos estamos certos da nossa existência; mas sabemos também que o nada existe, porque temos medo de termos vindo de lá e de para lá estarmos nos dirigindo. Nosso intelecto sabe que o nada da morte é inescapável, mas na verdade não acreditamos nisso. “Somos todos imortais enquanto estivermos vivos”, nos lembra o romancista americano John Updike.” (pág. 13)

“Mesmo materialistas linha-dura como o físico teórico inglês Stephen Hawking (1942) e o físico americano Steven Weinberg (1933) borrifam seus escritos com argumentos sobre a possível natureza de um Deus em que não acreditam. Hawking nos diz que podemos na verdade estar perto de conhecer a mente de Deus, enquanto Weinberg, mais imparcial, afirma que “a ciência não torna impossível acreditar em Deus. Simplesmente torna possível não acreditar em Deus”. “ (pág. 17)

“Em 2006, Stephen Hawking escreveu que a grande esperança da espécie humana de sobrevivência no futuro seria abandonar a Terra e procurar um novo mundo. Mas, enquanto isso, pode ser uma boa ideia ter um Plano B.” (pág. 20)

“Todos os objetos no sistema solar situados além da órbita de Netuno são chamados objetos transnetunianos.
Plutão, antes considerado o menor planeta do sistema solar, agora é definido como planeta anão. Plutão tem órbita excêntrica que o leva mais perto do Sol que Netuno, mas também muito além da órbita máxima de Netuno. Descoberto em 1930, Plutão deixou de ser um planeta em agosto de 2006, quando foi rebaixado a planeta anão e recebeu o número 134340. É o equivalente astronômico, não se pode deixar de pensar, de ser mandado de volta para o fundo da sala de aula. Quando este livro estava sendo escrito, o verbete Plutão na enciclopédia on-line Wikipedia estava bloqueado por causa de vandalismos. Parece ter havido tentativas de recuperar seu status planetário.” (pág. 39/40)

“Cometas são feitos de pó e gelo. Alguns, como o Halley, têm órbitas excêntricas que os aproximam do Sol. Nesses períodos, emergindo das profundezas geladas do sistema solar, parte do gelo é derretida pelo calor do Sol e vista da Terra como uma cauda. Embora chamemos de cauda, a “cauda” de um cometa é um vapor expelido pelo fluxo de partículas que emanam do Sol chamadas de vento solar. Por isso está sempre apontada para o lado oposto do Sol, quer o cometa esteja se aproximando ou se afastando do Sol.” (pág. 40)

“O filósofo e teólogo santo Agostinho (354-430) acreditava que o tempo era uma experiência subjetiva: “Se ninguém me perguntar, eu sei; mas, se eu quiser explicar a alguém que me perguntar, eu não sei”.” (pág. 69)
“O que sabemos de Pitágoras vem de relatos contraditórios escritos duzentos anos após sua morte. Hoje se sabe que não foi ele quem descobriu o teorema que leva seu nome, nem a relação entre os intervalos musicais e os números simples, também atribuída a ele.” (pág. 84)

“Estamos mais dispostos a aceitar a ideia de um lugar que contenha tudo do que um lugar que, de forma simétrica, deveria conter uma noção do que é o nada. O espaço contém tudo, mas onde está o nada?” (pág. 126)

“Hawking e Hartle afirmam que não há sentido em perguntar como o Universo começou, pois não havia nada parecido com o tempo na época. “No princípio” não é o princípio dessa história, porque o tempo se torna uma dimensão do espaço em altas energias.” (pág. 189)

“A natureza provisória da ciência é a sua força, não uma fraqueza. Chamar algo de teoria não significa que seja apenas uma ideia: a teoria é a forma mais avançada da explicação científica. A ciência segue um caminho provisório; é a sua natureza.” (pág. 214)

“Se estivermos certos quanto à teoria do Big Bang, temos que acreditar que 23% do Universo é formado por uma matéria que não conseguimos ver, 73% estão na forma de energia escura, e só 4% são de matéria normal. Por outro lado, toda essa matéria que falta pode ser uma prova de que a teoria do Big Bang está desmoronando. No entanto, a teoria do Big Bang tem sido tão bem-sucedida de tantas formas que poucos cientistas duvidam de sua capacidade para descrever a maior parte do que o Universo contém. De qualquer forma, não temos uma alternativa à teoria do Big Bang, e em última análise nosso desejo é de que nossas teorias fracassem para podermos encontrar teorias melhores. É descobrindo o que há de errado numa teoria que a ciência avança. A atual teoria pode ser corrigida ou substituída, talvez por uma teoria com uma abordagem radicalmente diferente.” (pág. 223)

“O primeiro requisito para encontrar outro exemplo de alguma coisa, seja o que for, é termos entendido o que na verdade é essa alguma coisa. Não é difícil reconhecer outra bola quando vemos uma, mas para entender o que poderia ser outra Terra, primeiro precisamos saber o que fará esta Terra parecer especial; só então saberemos o que procurar em outra Terra.” (pág. 236)

“Parece provável que a vida na Terra não tenha começado do zero. Moléculas sofisticadas que se transformaram em vida se formaram no espaço cósmico muito antes de a Terra existir. Quando nos perguntamos onde encontrar vida alienígena, talvez estejamos procurando no lugar errado. Nós somos vida alienígena. Viemos lá de fora e pode haver outras vidas alienígenas (provavelmente bacterianas) aqui na Terra que ainda não foram descobertas.” (pág. 241)

“A espécie humana surgiu por acaso a partir da vastidão do passado remoto e da multiplicidade de formas de vida que evoluíram. Nesse sentido, a história da complexidade evolutiva do Universo não tem nada a ver conosco.” (pág. 289)

“A natureza não seleciona pelo mais cerebral, mas sim pelo mais apto. Nem mais apto significa o mais forte: significa mais capaz de se adaptar ao ambiente em que habita. O psicólogo britânico Nicholas Humphrey (1943) escreveu sobre uma espécie de macaco inteligente o bastante para partir uma noz muito difícil de abrir. Mas o interior da fruta por azar se revela venenoso. Nesse caso, os macacos mais aptos dessa população são os que não são inteligentes para conseguir chegar até o fruto.” (pág. 302)

“A ciência e a religião aliviam o sofrimento no mundo, mas também aumentam o sofrimento no mundo. Se a religião com frequência é motivo para guerras, é a ciência que fornece formas cada vez mais sofisticadas de matar pessoas.” (pág. 316)

segunda-feira, 16 de julho de 2018

300 dias de bicicleta



Título: 300 dias de bicicleta
Autor: Sven Schmid
Páginas: 216

O livro relata a aventura do engenheiro alemão Sven Schmid, partindo de Buenos Aires e fazendo todo o percurso de bicicleta até chegar ao Canadá. Mostra os problemas encontrados, diferenças climáticas e de terrenos, dificuldades com o trajeto, problemas com a língua e a cultura, enfim, toda a diversidade de situações que poderiam surgir num percurso desta natureza.

O livro tem um peso especial para mim, pois, além de adepto do cicloturismo e me identificar com as situações enfrentadas pelo viajante, ele, o livro, foi presente de minha filha Karenina que, sabendo do meu gosto, soube muito bem o que poderia satisfazê-lo. Sendo assim me sinto duplamente felicitado. Parabéns ao autor pela façanha e à minha filha pelo bom gosto.

Trechos interessantes:

“Como ciclista, você se aproxima muito das pessoas, torna-se palpável e muitas vezes começa a conversar com agricultores, motoristas de caminhão, policiais, vendedores de quiosques, trabalhadores rurais, crianças. Quase sempre é a curiosidade das pessoas que nos aproxima; começam sempre perguntando de onde venho, para onde vou, quanto tempo dura a viagem. No início, custa alguma superação abrir-se e se envolver com as pessoas. Mas depois de dar este passo, vivemos as histórias mais bonitas e mais incríveis com pessoas desconhecidas e provenientes de uma cultura diferente da nossa, vivenciamos a verdadeira hospitalidade e recebemos a maravilhosa oportunidade de, por um momento, participar da sua vida.” (pág. 11)

“Quando finalmente penduro os alforjes nos bagageiros e sento no selim, um círculo de taxistas, seguranças e passageiros se formou a meu redor. “E para onde vai?”, perguntam e ficam pasmos quando simplesmente dou de ombros em resposta. “Por que não viaja de moto ou de carro?” Minha resposta faz as pessoas balançarem a cabeça: “Acho muito mais divertido pedalar do que ficar sentando num veículo motorizado”. Parece que na América do Sul só anda de bicicleta quem não pode comprar carro. Que logo eu, um europeu “rico”, use este meio de transporte, é algo que eles realmente não entendem.” (pág. 18)

“Já conheci muita gente simpática, mas encontros com outros ciclistas são muito especiais. É como encontrar irmãos de alma, pessoas às quais nos sentimos ligados de um modo particular, independente de nacionalidade, idade, profissão ou visão de mundo.” (pág. 31)

“O que eu mais gosto no esporte, especialmente no ciclismo, ou melhor, na viagem de bicicleta, justamente esta mudança de percepção e o fato de passar a valorizar pequenas coisas do cotidiano. Muitas pequenas coisas do dia a dia, como poder fazer uma refeição quente, ganham um novo sentido, e as impressões e sentimentos são vividos com muito mais intensidade. Para o meu paladar, tudo funciona como um intensificador do sabor – com a vantagem de não ter efeitos colaterais.” (pág. 43)

“A estrada passa por Salinas Grandes, um imenso lago salino seco situado a 3450 m de altitude. Entro por um caminho estreito e, por alguns minutos, pedalo sobre a crosta de sal. Em algumas partes ela é macia e difícil de passar, em outras partes, dura como concreto. Naquela altitude, o ar é gelado. Ao mesmo tempo, o sol a pino brilha sem nenhum filtro no céu azul cobalto. A superfície de sal, lisa como um espelho e branca como a neve, reflete a luz também de baixo para cima. Meu corpo não sabe se congela ou transpira, é uma sensação muito desagradável.” (pág. 52/53)

“Encostado na parede de uma casa, fico um tempo sentado na rua tentando me acalmar com ajuda de alguns pedaços de biscoito de chocolate derretido e alguns goles de Coca-Cola quente. Corro a vista pelas ruas do vilarejo que tem telhados de grama seca. Os tijolos de barro não cozidos usados nas paredes das casas não devem ser impermeáveis; nas casas mais antigas, vê-se que as paredes são mais finas e que o barro lavado pela chuva se acumula em montinhos ao lado da parede. Muitas das casinhas não têm janelas, ou apenas janelas muito pequenas; vidraças é algo que nem todos os moradores devem conseguir comprar. E eu sentado aqui reclamando, com meu equipamento supereficiente, que certamente vale mais do que o patrimônio de muita gente neste povoado. Na verdade, com todas as garantias que possuo, como cartão de crédito, plano de saúde, previdência privada e uma profissão segura e entre as mais bem pagas, eu deveria me envergonhar de reclamar do meu problema desimportante e que, certamente em questão de poucas horas, vai deixar de existir. A situação em que estou exemplifica muito bem o fato de que as pessoas norteiam suas exigências pelas próprias possibilidades e pelo grau de dificuldade dos seus problemas cotidianos. Quanto mais tranquila e despreocupada a vida, mais rápido as pessoas se afligem com pequenas dificuldades.” (pág. 65)

“Sendo parte do trânsito, especialmente quando se locomove de bicicleta, você obrigatoriamente coloca seu destino nas mãos de centenas de pessoas cuja consciência pode estar sob influência de álcool, drogas ou cansaço.” (pág. 80)

“Parece que a criatividade do ser humano não conhece limites quando se trata de tirar dinheiro dos turistas. Pessoas de trajes típicos acenam de longe quando atracamos, inundando-nos com os sorrisos mais gentis, e jovens mulheres nos dão seus bebês para segurar. Mas se você deixar a ilha sem comprar o bordado de 25 dólares com a inscrição I love Puno de um lado e a etiqueta Made in China do outro, esse sorriso simpático e gentil se transforma em um olhar mau de desprezo.” (pág. 83)

“Vejo os rostos tristes das pessoas em seus casebres miseráveis, as montanhas de lixo. Quais as chances de uma pessoa nascida naquele fim de mundo não terminar a vida amargurada e triste? Face aos lucros que saem dessas minas, as pessoas aqui deveriam ser prósperas, mas a maior parte dos lucros sai do país junto com as matérias-primas extraídas, deixando para trás pessoas empobrecidas e malformadas em um ambiente venenoso e poluído.” (pág. 100)

“’Queria saber e entender o que as pessoas pensam, como organizam suas viagens e o que as motivou’, diz Lucho quando tomamos uma cerveja e eu lhe pergunto por que resolveu abrir o albergue. Lucho fala de um amigo de longa data da Alemanha, Heinz Stucke. Heinz é um ícone para os viajantes de bicicleta, uma espécie de líder da nação dos ciclistas. Começou sua viagem era 1962 na localidade de Hovelhof, na Renânia do Norte-Vestfália, nunca mais tendo voltado para a Alemanha. Desde então pedala incessantemente mundo afora. Nos últimos 50 anos, percorreu mais de 600.000 km, quase tudo na mesma bicicleta. Já se hospedou algumas vezes no albergue de Lucho. Na parede do corredor há várias fotos de sua viagem.” (pág. 103)

“Diante de um bosque, Georgy para abruptamente e manda; “Joguem o lixo na mata.” Não consigo acreditar quando olho para os dois tonéis cheios de copos e garrafas de plástico e latas de conserva. Como é possível? “Isso mesmo, os dois latões, é só virar e despejar, sempre deixamos nosso lixo aqui.” Com o coração pesado eu sigo as ordens e deixo o conteúdo dos latões cair ao lado da estrada, onde já há lixo de plástico, metal e vidro. Mal consigo acreditar na selvageria que estou cometendo. Para mim, europeu ocidental, esse ato equivale a um crime, mas se eu não cumprir a ordem, Georgy executará a tarefa com as próprias mãos, como parece ser o hábito aqui.” (pág. 112)

“...com uma taxa de criminalidade relativamente baixa, a Costa Rica é considerada um dos países mais seguros da América Central. Um fator que certamente foi bastante significativo para isso foi a decisão do presidente José Figueres Ferrer, em 1949, de dissolver o exército através de um ato constitucional e de investir as verbas nos setores da saúde e da educação. É de se lamentar que outros países não tenham seguido essa ideia. Certamente o mundo de hoje seria bem diferente.” (pág. 150)

“A hospitalidade é enorme. Sinto-me um pouco mal ao ganhar um presente tão grande, sem poder retribuir. Ser tão bem e generosamente tratado por pessoas estranhas é uma experiência especial e muito marcante. Quando pergunto como posso retribuir, Laurie diz: “Não precisa devolver para nós, basta ser gentil com outros, assim tudo se compensa a longo prazo. Nós ganhamos muitos presentes na vida e tampouco pudemos retribuir”.” (pág. 203)

“Mal posso acreditar quando leio numa placa que ciclistas estão proibidos de circular na estrada entre 11h e 16h. É bem típico dos EUA, penso. Carrões, ônibus e vans têm prerrogativas que as bicicletas não têm.” (pág. 205)

“Como habitante de um país da Europa ocidental com chances e possibilidades quase ilimitadas tendemos a considerar quase natural coisas como bem-estar, educação, paz, segurança e justiça. Esquecemos como são valiosas essas conquistas e o que significam para a qualidade de vida – até o momento em que nos confrontamos com gente que vive numa sociedade sem nada disso. O que torna mais impressionante, portanto, a coragem e a força das pessoas que tocam as suas vidas com meios próprios, conservando, mesmo assim, um olhar positivo para a vida. Elas nos mostram que é possível lidar de várias formas com situações e que há vários caminhos que levam ao mesmo fim.” (pág. 210)

terça-feira, 3 de julho de 2018

Do universo à jabuticaba



Título: Do universo à jabuticaba
Autor: Rubem Alves
Páginas: 256

Este é um livro de textos curtos e pequenas histórias (algumas com apenas poucas linhas) sobre os mais diversos assuntos. As histórias estão separadas por temas, tais como: Criança, velhice, reflexões, vida e morte, música, natureza e assim por diante. Cada tema apresenta vários textos com ensinamentos, reflexões e discussões mostrando a visão do autor.

Vários são os assuntos recorrentes, principalmente os relacionados às áreas de especialidade do autor, como a teologia e a educação. Cada assunto é abordado de uma maneira direta, simples, às vezes até cômica, facilitando a compreensão e possibilitando ao leitor a oportunidade de se aprofundar sobre o tema. Em resumo, uma ótima leitura.

Trechos interessantes:

“Há ruídos que não se ouvem mais; o grito desgarrado de uma locomotiva na madrugada; os apitos dos guardas-noturnos; os barbeiros que faziam cantar o ar com suas tesouras; a matraca do vendedor de cartuchos; a gaitinha do afiador de facas. Todos esses ruídos apenas rompiam o silêncio. E hoje o que mais se precisa é de silêncios que interrompam o ruído...” (pág. 12)

“Meus sonhos? Sonho em ter tempo para curtir as montanhas e cachoeiras das Minas Gerais. Sonho em ter tempo para vagabundear. Sonho em ter tempo para brincar com minhas netas. Sonho em escrever uns livros que estão na minha cabeça e que não consigo por falta de tempo.
O que tenho sentido? Beleza. Nostalgia. Tristeza. Cansaço. Urgência. A curteza do tempo. Um enorme desejo de passar uns tempos num mosteiro, longe de cartas, telefones, micros, viagens, e-mails, curtindo a solidão e a ausência de obrigações.” (pág. 16/17)

“O que tenho pensado? Penso tanta coisa que não é possível dizer o que tenho pensado. Penso que o tempo está passando. Penso que o mundo está cheio de beleza. Penso que não quero morrer. Penso que quero morrer. Penso que, se Deus tivesse pedido meus conselhos o mundo seria melhor.” (pág. 18)

“Ele chegou na hora certa. Aluno da Unicamp, me pedira uma entrevista. Eu não sabia o que ele queria saber de mim. Assentados, ele com prancheta e caneta na mão fez a grande pergunta: ‘Eu queria saber como foi que o senhor planejou a sua vida para chegar aonde chegou...’. Compreendi imediatamente. Ele gostava de mim. Me admirava. Queria ser como eu. E queria que eu lhe revelasse o segredo, o mapa... Fiquei triste por ter de desapontá-lo. Minha resposta, absolutamente verdadeira, foi: ‘Eu estou onde estou porque tudo que planejei deu errado...’ .” (pág. 26)

“Visitando uma reserva florestal no estado do Espírito Santo, a bióloga encarregada do programa de educação ambiental me disse que é fácil lidar com as crianças. Os olhos delas se encantam com tudo: as formas das sementes, as plantas, as flores, os bichos, os riachinhos. Tudo, para elas, é motivo de assombro. E acrescentou: ‘Com os adolescentes é diferente. Eles não têm olhos para as coisas.Eles só têm olhos para eles mesmos...’. Eu já tinha percebido isso. Os adolescentes já aprenderam a triste lição que se ensina diariamente nas escolas. Aprender é chato. O mundo é chato. Os professores são chatos. Aprender, só sob ameaça de não passar no vestibular. Por isso quero ensinar as crianças.” (pág. 46)

“Sonho com o dia em que as crianças que leem meus livrinhos não terão de grifar dígrafos e encontros consonantais e em que o conhecimento das obras literárias não será objeto de exames vestibulares: os livros serão lidos pelo simples prazer da leitura.
Não avalio as crianças em função dos saberes. São os saberes que devem ser avaliados em função das crianças. E isso que distingue um educador. Um educador não está a serviço de saberes. Está a serviço dos seus alunos. ‘Aquele que é um mestre, realmente um mestre, leva as coisas a sério – inclusive ele mesmo – somente em relação aos seus alunos’. (Nietzsche).” (pág. 50/51)

“As crianças jamais desejam ser aposentadas de ser crianças. O terrível e mortal é quando o homem se aposenta. Não estou me referindo simplesmente ao momento em que não é mais necessário comparecer ao trabalho. Estou me referindo àquele momento quando um homem ou uma mulher atracam o seu barco e se entregam à tola ilusão de, finalmente, ter paz. Mas paz, precisamente, é o que a alma não deseja. A alma deseja o perigo, o desconhecido. A alma é uma águia que ama as alturas, as montanhas geladas, o mar desconhecido, os abismos. A alma é guerreira: ‘Pugno, ergo sum’ – luto, logo existo. É preciso que  haja sempre uma batalha a ser travada.” (pág. 58)

“Chamar a velhice de ‘melhor idade’ é o mesmo que chamar as gestantes de ‘virgens’ e as pessoas com dificuldade de locomoção de maratonistas...” (pág. 61)

“Parar de fumar aos poucos é o mesmo que parar de ser infiel à esposa aos poucos...” (pág. 84)

“Diabetes não tem cura. É doença crônica. Doença crônica é uma doença que requer cuidados até a morte. Mas não se apoquente. A vida também é doença crônica que exige cuidados até a nossa morte. Todo dia você tem de comer, beber, respirar...” (pág. 94)

“O que meu coração deseja não é navegar para o futuro. O futuro é o desconhecido. E por mais que eu dê asas à minha imaginação não consigo amar o que não conheço. Pode ser que ali se encontrem as coisas mais maravilhosas – mas, como eu nunca as tive, não posso amá-las. Não sinto saudades delas. A saudade é um buraco na alma que se abriu quando um pedaço nos foi arrancado. No buraco da saudade mora a memória daquilo que amamos, tivemos e perdemos: presença de uma ausência.” (pág. 108)

“Posso prometer atos: proteção, companhia, cuidado. Não posso prometer sentimentos. ‘Sei que vou te amar, por toda a minha vida eu vou te amar...’ É lindo, mas não é verdade. Atos futuros podem ser prometidos. Sentimentos só podem ser cantados no presente.” (pág. 111)

“Tenho tristeza pelos pecados que não cometi... Eram pecados tão inocentes... Estou até desconfiado de que se Deus está me castigando, ele está me castigando porque eu não pequei o tanto que ele queria que eu pecasse.” (pág. 137)

“Há a fantasia de que ‘ela é areia demais para o meu caminhãozinho’. Claro que há sempre o recurso de se fazer duas viagens, se houver gasolina para tanto. Mas a assimetria continua.” (pág. 164)

“Educar é mostrar a vida a quem ainda não a viu. O educador diz: ‘Veja!’ – e, ao falar, aponta. O aluno olha na direção apontada e vê o que nunca viu. O seu mundo se expande. Ele fica mais rico interiormente. E, ficando mais rico interiormente, ele pode sentir mais alegria e dar mais alegria – que é a razão pela qual vivemos.” (pág. 232)