domingo, 12 de agosto de 2018

...Longe da terra



Título: ...Longe da terra
Autor: José Mauro de Vasconcelos
Páginas: 212

José Mauro é, de longe, o meu escritor favorito. Ele consegue descrever a minha terra (Goiás) de uma maneira simples e, ao mesmo tempo, muito profunda. Sei que há vários escritores com esta característica, mas desde o primeiro livro dele que li, me identifiquei bastante com sua escrita e desde então o adotei como escritor predileto.

Longe da Terra é versão romanceada da época que o autor perambulou pelas selvas goianas, às margens do Araguaia, quando ainda não havia estradas em abundância e o principal meio de transporte eram as embarcações. Mostra a cidade de Aruanã em seus primórdios, quando ainda era chamada Leopoldina, havia mais índios que brancos e civilização era alguma coisa muito, muito distante.

Trechos interessantes:

“Eu me lembro que o Chico barbeiro chegou por aqui todo animado. Abriu um salão. Improvisou uma cadeira de braços. Colocou um espelho grande na parede. Arranjou um tamborete. Em cima dele botou umas tesouras, duas navalhas emagrecidas e marrons, uma cuia, um pincel de barba, um... um... como é mesmo o nome daquilo?...um negócio que borrifa o rosto depois de feita a barba, uns pedaços de jornal cortados em losangos desencontrados para limpar o sujo da barba com sabão.
Ficou um salão mais que luxuoso. Se ficou! Chico barbeiro cruzou os braços e esperou num orgulho de artista. E quase que ficou de braços cruzados para o resto da vida.
O povo vinha contar histórias e ouvir casos. Nada mais que isso. Não que ninguém quisesse fazer a barba. Querer todo mundo queria. É bom a gente ficar com o rosto liso, macio, limpo. Mas cadê dinheiro? Ninguém tem. Ninguém teve. Ninguém terá.” (pág. 13)

“Daqui a pouco, passarão os papagaios e os periquitos selvagens. Farão uma algazarra, rasgando o céu e criando uma sombra negra contra o sol. Eles sempre passam. Ao amanhecer, ao meio-dia e ao entardecer. Vão para qualquer parte onde haja uma roça a devastar. Aqui eles nunca pousam. Ninguém trabalha a terra. Dá muito trabalho.
Não que a terra deixe de dar. Onde já se viu um lugar de Goiás que seja estéril? A terra roxa é tão fértil que só em se pensar em plantar, ela germina. Mas ninguém pensa porque dá trabalho.
É a Terra da Promissão. Entretanto, maior que a fertilidade da terra é a indolência dos homens.” (pág. 14)

“O preto Virgílio passava todas as manhãs, para ver o quanto o rio tinha crescido. Depois então, saía pastoreando, debaixo da chuva, as duas vacas que constituíam a sua grande fortuna. Aquela fortuna que não causava inveja a ninguém. O povo ali não ambicionava nada dos outros. Porque a própria inveja era capaz de produzir uma indução ao trabalho por meio de uma indução de posse. E então para que invejar?” (pág. 25)

“Em compensação, major Sant’Ana foi povoando a terra. Enchendo a cidade e as margens do Araguaia de filhos de diversas espécies e colorações. Estabelecendo uma promiscuidade de raças.
Os seus filhos vagueiam pelas brenhas e vivem uma vida de sertanejo comum. Não têm a perversidade do negro. Uns se conservam em Leopoldina, outros foram descendo e se grudaram por outras plagas do Araguaia,.. São bons, apesar da mistura das raças e da diferenciação da cor.
Estranho que de uma mistura de raças, onde os seres uniam a preguiça com a crueldade, o medo com a ignorância, a ingenuidade com os instintos bestiais, só se poderia esperar um produto legitimamente deteriorado. Mas a triste experiência deu um resultado negativo que, felizmente, para os seres humanos e semelhantes, tomava a melhor forma de positivo.” (pág. 46)

“...Não quero outra vida
Pescando no rio de Jereré
Dormindo no rancho onde há siri-patola
Até dá cum pé...

Quando no terrêro faiz noite de lua
E vem a sôdade me aturmentá
Eu me vingo dela
Tocando a viola de papo pro á...

Ai, meu Deus, que antigamente, na cidade, eu também já cantara essa canção. Achava impossível que aquela letra fosse verdadeira. Como poderia um homem ser capaz de tanta preguiça, de tanta falta de realização?
Não. Que absurdo. Não havia ser vivente qualquer, que se sujeitasse, que se limitasse numa situação de letargia...
Isso, antigamente. Agora...” (pág. 50/51)

“Um dia, agora estou decidido. Escreverei um livro, onde a trama principal será a indolência. Onde o povo viva tão perto e tão longe da terra. Relevando e revelando a preguiça que jorra dessa Terra da Promissão não germinada.” (pág. 86)

“A vida revivia agora de um grande período de inatividade. E era bom. Quem não ia à pesca, se atarefava em qualquer coisa, exceto plantar. Por que raios, ninguém gostava de plantar?” (pág. 107)

“Amarrei o cordão em volta da cintura. Como estou pobre! Minha calça é uma série de remendos que se continua em buracos mal tapados. Toda a minha roupa se acabou semelhante ao meu orgulho. Sou um ser humano vaidosamente notável e desprendido. Nada tenho. Nada possuo. Nada sou. Minhas camisas se foram. Até uma que era branca, que eu guardava religiosamente para se um dia eu voltasse à cidade... Mas não voltarei.” (pág. 163/164)

“Em menos de quinze minutos voltava o cabo Milton. Carregava um belo tucunaré. Não esperava que ele se demorasse mais que esse tempo. No Araguaia, a gente joga o anzol e fala:
–Preciso de um tucunaré. Tenho dez minutos para esperar...
O rio atende ao pedido. Naturalmente que assim fazendo, ele, com um peixe a menos, poderia respirar melhor nas suas águas.” (pág. 177)

“E a história daqueles índios que iam comprar fumo nas canoas que passavam, com notas de 100, 200 e 500 mil-réis? Aquilo também é justo?
–Justíssimo. Antes de os brancos chegarem por aqui, não havia muita ambição entre os carajás. Ou mesmo entre qualquer outro índio. Não havia. Agora eles querem fumo. É um vício. E todo vício exige do homem qualquer sacrifício. Eles querem fumar. Encher os aricocós de fumo. Esse vício torna-se caro, porque eles não têm o miserável dinheiro. Mas eles têm que fumar. Pedem ao branco. Não recebem. Entretanto se tivessem dinheiro, os brancos que passam lhes venderiam fumo. Que fazer? Arranjar primeiro dinheiro. De qualquer jeito. E eles o arranjam...
– E você aprova o modo como eles arranjam esse dinheiro?
–Plenamente. Eles não têm o senso da propriedade. Não sabem o valor do dinheiro. Sabem que ele vale e que com ele poderão comprar o fumo. Desce uma canoa. É um branco. Pode ser um garimpeiro. Uma emboscada. Um corpo às piranhas e o dinheiro na mão. O maldito dinheiro, que compra o fumo e sustenta o vício. Outro branco que passar lhe venderá o fumo. Porque ao deparar o dinheiro, com uma nota graúda de duzentos mil-réis, não enxergará o dinheiro e sim um aviso: o que passou antes pagou com a vida, um fumo que não quis dar... O fumo. Afinal uma tara que o branco trouxe...” (pág. 185/186)

“A vida existiu antes de você e sem necessidade de você. Tudo é continuação. Essa pequena importância que você se dá, é um reflexo da comodidade exposta no seu burguesismo. Mas não adianta.” (pág. 187)

“Uma sensação de admiração me atacou ao atingirmos o começo da ilha. Djoé ia explicando.
–Se chama de Bananal, dotô, num é purque tenha mata de banana brava, não. É purque se parece cum uma banana cumprida. São cem légua de cumprimento e quarenta de largura... Tá vendo ali, doto? É o Araguaia que se devide. Do lado que nóis vai ele continua Araguaia. Do ôtro, se chama de javaé. Ali é lugá de aldeia de Javaé. Na metade da ilha tem muita aldeia de índio Javaé.
– É verdade que índio Javaé era o mesmo carajá, Djoé?
– É sim. Eles brigaro e se afastaro da gente. Mas ainda fala a mesma língua e usa “omurarê” debaixo dos olhos e no braço esquerdo.” (pág. 191)

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