Título: O machado gentil
Autor: R. N. Morris
Páginas: 366
Num parque de São Petersburgo são encontrados dois mortos. Um deles
foi morto à golpes de machado e o outro estava enforcado, com um machado na
cintura. O investigado Porfiri não acredita que o assassino tenha se enforcado
por remorso e vai, de todas as formas, tentar elucidar o caso.
A contracapa do livro traz uma comparação (forçada, é claro) com Crime
e Castigo e nas notas de agradecimento o autor se justifica. No cômputo geral é
uma história simples, mas bem trabalhada. Vale a leitura.
Trechos interessantes:
Caminhou penosamente, atarantada, as pernas incertas e doloridas. Em
um nicho no meio do lance de escada seguinte imaginou ter visto uma figura
vacilante, uma forma escura em meio às sombras escuras. Eram olhos que
cintilavam na escuridão ou faíscas brancas incendiando seu cérebro? Ela estava
exausta, tão cansada que não era inconcebível que seus pesadelos tivessem vindo
na frente para encontrá-la. (pág. 32)
“Eu combinei com sua proprietária resolver suas dívidas aqui. Isto
cobrirá a dívida?” Porfiri presenteou o estudante com cinquenta rublos.
“Por que você faria isso por mim?”
“Porque eu acredito que você tem potencial para algo melhor. Mas temo
que a pobreza e a fome possam conduzi-lo a atos que você lamentará.”
“Como você pode saber tanto de mim? Nós acabamos de nos conhecer.”
“Mas eu conheci alguém muito parecido com você antes.” (pág. 87)
Por fim, Porfiri voltou o olhar para Pervoiedov. De maneira
extraordinária, ele sustentou o olhar sem piscar. “Há algo que você deseja
dizer?”
“Muito bem, muito bem. Vou dizer. Com todo o respeito, realmente, com
extremo respeito, quero que saiba que eu detesto seus métodos.”
“Naturalmente. Você é um médico. Eu sou um investigador criminal. Nós
temos propósitos diferentes, afinal de contas. Mas eu lhe pergunto, como
médico, você preferiria que eu empregasse os velhos métodos para extrair
informações?”
“Substituir uma forma de brutalidade por outra não é progresso.” (pág.
102)
Porfiri traçou uma linha no ar com as costas da mão, o gesto de um
conjurador, enquanto conferia a fila de machados pendurados. Mas, é claro, não
precisava fazer isso. Podia ver perfeitamente bem onde o machado que faltava
deveria estar. E também podia supor, de sua posição na hierarquia de machados,
que seu tamanho era o mesmo que o do machado ensanguentado encontrado com
Boria.
Fitou o espaço vazio e se questionou sobre a mente que havia escolhido
aquele machado em lugar dos três outros pendurados ali. Só havia um machado
menor do que aquele que havia sido levado. Era provável que houvesse sido
arrebatado com pressa. Mas, mesmo assim, algum exercício de intenção deve ter
estado envolvido, consciente ou inconscientemente. Por exemplo, por que o
machado menor não fora levado, pois seguramente teria sido mais conveniente? O
machado, ou melhor, a ausência desse machado em particular, tinha de apontar
para algo. Era precisamente por causa de um detalhe como esse que o assassino
se trairia. (pág. 144)
“...Você sabe, traduzir filosofia não é uma ciência exata. Como
estávamos discutindo há pouco, o tradutor precisa empregar sua imaginação. Ele
primeiro tem de entender o que o filósofo pretende dizer, antes de tentar transpor
o significado em outro idioma. Pegue Hegel. Ele não era entendido nem mesmo
pelos alemães. Ele disse: ‘Um homem me entendeu, e mesmo assim não compreendeu’.
Mas é de se admirar realmente? A linguagem, o único meio que temos disponível
para expressar o pensamento, está longe de ser perfeita. Podemos dizer com
certeza que existem coisas para as quais não temos palavras. As palavras
simplificam e reduzem o universo. Além disso, há uma gradação de ideias que não
são refletidas na natureza categórica e divisiva da linguagem. Hegel mostrou,
eu acho, que é possível uma ideia conter dentro de si mesma seu oposto. Uma
palavra não pode fazer o mesmo. Sim, realmente”. (pág. 178/179)
Porfiri apontou uma mão, num gesto de rejeição, para os cantos do
quadro. Ele olhou para Zoia. “O que elas precisam, o que todos vocês precisam,
é provisão para este mundo. Se
estiver preocupada com o próximo mundo, você pode rezar. Afinal de contas, a
oração é de graça.” (pág. 199)
“Deixe-me apresentar isso de outro modo. Enquanto você é mantido aqui,
como nosso principal suspeito, o verdadeiro assassino acreditará que está a
salvo. Ele pode baixar a guarda. Pode até se revelar por algum equívoco
involuntário. Se nós o libertarmos, ele sentirá que está de novo sob suspeita.
É natural, é a neurose natural de um criminoso. Ele começará a desejar saber o
que você disse, ou o que poderia dizer. Irá tentar estabelecer ligações. Ele
atormentará o próprio cérebro, tentando lembrar-se de todas as conversas que
alguma vez chegou a ter com você, até se lembrar da ocasião em que, de certo modo,
deixou escapar aquele detalhe incriminador.”
“E se eu não conhecer esse sujeito?”
“Oh, não tenha ilusões, meu amigo. O assassino é um conhecido seu.
Alguém que você conhece, alguém que o conhece.” (pág.206)
Os olhos do menino se arregalaram no rosto manchado de carvão. “Assassinato!”
“Sim.”
“Há uma recompensa?”
“Você terá a satisfação de saber que cumpriu seu dever como um súdito
leal do tsar.”
“Isso não é bem uma recompensa.”
“Talvez eu devesse lhe explicar como funcionam os sistemas legais. Não
se trata de ganhar recompensas por fazer seu dever, e sim de ser penalizado por
não cumpri-lo. Se você não me der a informação que exijo, eu posso prendê-lo.”
(pág. 209)
“Agora eu realmente já ouvi bastante dessa cansativa tolice. O fato é,
Porfiri Petrovitch, que eu não poderia ter sido o assassino de Boria, ou de
Goriantchikov. Eu estava a mil verstas daqui, em Optina Pustin. Se você tivesse
se dado ao trabalho de conferir meu álibi, teria se poupado o embaraço de fazer
estas acusações absurdas e bastante infundadas.”
“Eu conferi seu álibi. Sempre suspeito das pessoas que se dão ao
trabalho de produzir um álibi antes de serem acusadas de qualquer coisa, como
você fez.” (pág. 345)