domingo, 31 de dezembro de 2017

Laços de sangue

Título: Laços de sangue
Autor: Michael Cunningham
Páginas: 458

O livro relata a vida da família Strassos. Constantine, um jovem grego, vai para a América em busca de um futuro melhor. Ali se casa com Mary, descendente de italianos e inicia uma família. Teve três filhos mas não se deu bem com nenhum deles. Nunca conseguiu se entender com Billy, seu filho; tinha uma paixão incestuosa por sua filha Susan e era indiferente à sua caçula, Zoe.
Com o passar dos anos, Constantine vai conseguindo estruturar sua vida financeira, mas não tem o mesmo sucesso com sua família: seu filho se revela um homossexual, Susan embarca num casamento insosso para se afastar do pai, Zoe se prostitui e ele se separa de Mary. No fim, sua família tomou um rumo totalmente diferente do que ele uma dia imaginara.

Trechos interessantes:

"Embora amasse os três filhos, Billy era o único que ela conseguia ler. Para ele Mary comprava suéteres macios com decote em V, da Escócia. Quando ele entrou para a quinta série, comprou uma pasta de couro cor de vinho e um chapéu verde de caçador. Para as meninas, ela mobiliou uma casa de bonecas, que primeiro passou a noite no quarto de Susan e depois no de Zoe. A poeira se acumulava na mobília de madeira trabalhada, nas lâmpadas que funcionavam de verdade. Com um aperto de prazer culpado, Mary periodicamente limpava a casa de bonecas e rearranjava os pequenos móveis." (pág. 42)

"Se ele a segurasse ali mais um minuto - se dissesse que não se importava com as regras e a ira do pai dela - Susan poderia dar início ao longo processo de se apaixonar por ele. Mas a força de Todd residia em  fazer absolutamente tudo o que se esperava dele. Era conhecido por sua cooperação expansiva, alegre. Algumas vezes citava Will Rogers: 'Nunca encontrei um homem de quem eu não gostasse'." (pág. 61)

"Um dia eu vou matar o papai e, quando isso acontecer, não quero que as pessoas saiam por aí dizendo que eu perdi o controle, ok? Quando eu o matar não vou machucar ninguém mais, não vou quebrar nada. Mas ainda assim, quero que fique claro. Quero que você diga que ficou aqui fora comigo uma noite e que eu disse que ia matá-lo. Só ele. Ninguém mais. Você faz isso? Você faz isso pra mim?" (pág. 66)

"'Parece que o casamento está sendo um sucesso.'
'Acho que todo casamento é um sucesso, não é, não? Quer dizer, desde que realmente se casem, tá feito.'
'Se fosse só isso que importasse, eles poderiam ter ido a um juiz de paz e poupado a seu pai o gasto de quase cinco mil dólares.'
[...]
'Quando eu me casar', Billy disse, 'nós vamos a um juiz de paz. Se alguém quiser contribuir com cinco mil paus, a gente vai pegar a grana e passar, vamos dizer, um ano na Europa.'
'A garota com quem você se casar pode pensar de forma diferente.'
'Eu não me casaria com alguém que pensasse de forma tão diferente assim.'" (pág. 91/92)

"As duas primeiras vezes eles deixaram passar, depois a advertiram. Madame, acho que a senhora cometeu um engano. Tenho certeza de que a senhora não tinha intenção de pôr essa escova de cabelo dentro de sua bolsa. Quando tornou a fazer a mesma coisa, eles a prenderam.
Os tiras foram educados, ficaram até embaraçados. Isso era a América. Se você fosse um sujeito realizado, se tivesse ganho dinheiro, até a polícia queria acreditar na sua inocência. Para Constantine, o embaraço deles era mais aflitivo do que teria sido o ódio." (pág. 109)

"[...]'Não nego que já andei afanando nas lojas durante um certo tempo, mas, queridinha, isso não comprometeu de jeito nenhum minha capacidade de reconhecer um pervertido quando vejo um deles.'
'Um pervertido', disse o homem. 'Está certo. Você está me chamando de pervertido.'
'Pervertido', continuou o homem de peruca, 'é alguém que faz aos outros coisas que eles não querem que lhes sejam feitas. Ponto.'" (pág. 151)

"Zoe disse a Trancas: 'Não sei se você deveria estar fazendo isso.'
O rosto de Trancas continha sua luz arrebatada, furiosa. Ela já estava longe.
'Trinta dólares, Zo. Para um trabalho aí de uns vinte minutos. Mais uns nove caras e aquela Harley é minha.'
'Mas isso é prostituição.'
'Cara. A mesma coisa é ser garçonete ou secretária. Só que isso paga melhor.'" (pág. 157)

"E o que acontecera com seu filho? Aos vinte anos, ele era um garoto de pequenos óculos redondos, do tipo que as solteironas amargas usavam. Um garoto cujos cabelos tocavam os ombros finos com uma secura nervosa, como as cortinas de uma velha. Participante lá em Harvard, devotado aos humildes da terra, cujo trabalho, no cômputo geral de suas vidas, nunca fora tão duro quanto o de Constantine numa única semana. Ele podia contar umas histórias sobre condições desfavoráveis. Tentem vir para este país sem dinheiro nenhum, sem saber nada de inglês além de 'alô' e 'por favor'. Quantos homens poderiam construir o que ele construíra a partir de 'alô' e 'por favor'? Então vocês são pretos. Me desculpem. Agora me contem sua verdadeira história." (pág. 168)

"O que acontecera? Uma pessoa como Billy, um rapaz tão bem preparado, deveria estar devorando o mundo. Deveria andar a passos largos vida afora, forte como um cavalo, esperto como um lobo, extraindo o sangue dócil dos corações das mulheres. Quando Mary deu à luz um filho, Constantine se imaginara pegando punhados do futuro e os enfiando na boca do filho. Filhas, mesmo as melhores, desapareciam nas vidas dos homens. Mas um filho te carregava. Os prazeres dele te incluíam; você vivia na própria pele e também na pele dele." (pág. 169)

"E realmente o rio era lindo. Era um grande rio largo com árvores nas duas margens, e o senhor sabe que era difícil ter mais gente lá, pois não são muitos os que optam por andar tanto só para ver uma coisa que flui diretamente das torneiras da nossa casa..." (pág. 263)

"O que parecia impossível era a ideia de que ela pudesse morrer antes que Jamal tivesse idade suficiente para saber que ela era alguém que também fora criança. Se Zoe morresse enquanto  ele era ainda muito jovem, ela existiria na memória dele apenas como mãe. Ele se lembraria das bondades e dos erros. Construiria seu próprio mito e isso seria o que ele carregaria dela. Era assim que ela viveria depois da morte, como um exagero e uma abstração. Era uma ideia que ela detestava e que ao mesmo tempo, numa região bem longínqua no fundo de si, a fascinava." (pág. 306)

"'Eu queria sair com você um dia.'
'Os lugares aonde vou não são para meninos de dez anos.'
'O que é que você faz quando sai?'
'A gente já conversou sobre isso antes.'
'Quero ouvir outra vez.'
'Danço em cima do balcão do bar e falo com gente idiota. Se eu achasse que você estava perdendo alguma coisa, eu te levaria. Pode confiar em mim.'
'Então por que é que você sai sem parar?'
'Tenho talento para isso. As pessoas devem fazer aquilo em que elas são boas, você não acha?'" (pág. 341)

sexta-feira, 29 de dezembro de 2017

Especiais

Título: Especiais
Autor: Scott Westerfeld
Páginas: 350

O livro é a continuação da saga iniciada com "Feios" e depois "Perfeitos", um futuro utópico onde a beleza é levada ao extremo que os jovens ao atingirem a adolescência ganham de presente uma cirurgia que os torna simplesmente perfeitos.

Neste volume, não basta ser perfeito, tem que ser Especial. Tally faz parte de um grupo dos Especiais cuja função é algo assim como fiscalizar os Perfeitos. Seu objetivo principal é encontrar a cidade onde vivem as pessoas que se recusam a se transformarem em perfeitos. No final, Tally começa a se questionar se o fato de ser especial é algo realmente significativo.

Trechos interessantes:

"-Eu me lembro de tudo agora, David! Finalmente entendi! - Sua mente estava clara como a de um Especial, livre de emoções descontroladas de feios e pensamentos avoados de perfeitos. Tally percebeu a verdade sobre os Enfumaçados. Eles não eram revolucionários, não passavam de egocêntricos que brincavam com a vida dos outros, deixando um rastro de destruição." (pág. 53)

"Ela [Tally] geralmente adorava fogueiras pela maneira como davam vida às sombras e pela maldade de queimar árvores. Essa era a principal razão de ser especial: a pessoa existia para manter os demais na linha, mas isso não queria dizer que ela precisava se comportar." (pág.62)

"-Eu não quero ver as coisas desse jeito! Não quero sentir nojo de quem não for da nossa turma, Shay!" (pág. 93)

"Guerra biológica tinha sido uma das ideias mais brilhantes dos Enferrujados: criar bactérias e vírus para matar uns aos outros. Era uma das armas mais estúpidas que alguém poderia projetar, porque assim que os micro-organismos acabavam com os inimigos, eles geralmente iam atrás de quem os soltara." (pág.109)

"Tally percebeu que estava sentada no ponto cego da máquina. As câmeras não conseguiam virar para vê-la e o chassi blindado não tinha sensores para detectar seus pés. Aparentemente, quem projetara a nave voadora jamais imaginara que haveria um adversário em cima dela." (pág.267)

"Tally estava começando a se indagar se todas as cidades tinham departamentos de Circunstâncias Especiais ou se eram como Diego, que permitiam o livre trânsito das pessoas. Talvez a cirurgia especial- aquela que tornou Tally o que ela era - fosse algo que a Dra. Cable tivesse inventado sozinha. O que significaria que Tally realmente era uma aberração, uma arma perigosa, alguém que precisava ser curada." (pág. 273)

"A liberdade acaba destruindo as coisas, eu acho." (pág. 335)

terça-feira, 19 de dezembro de 2017

Homem-máquina

Título: Homem-máquina
Autor: Max Barry
Páginas: 284

Charles Neumann é um engenheiro que trabalha num laboratório de pesquisas. Um dia, por acidente, ele perdeu uma das pernas em uma máquina e teve que usar uma perna mecânica. Ele percebeu que poderia fazer algumas inovações nessa perna de maneira a melhorar o seu funcionamento.

Ele se sentiu tão bem com o resultado que resolveu, propositadamente, perder a outra perna para também implantar uma nova perna mecânica. Daí para a frente a preocupação de Charles era procurar em seu corpo o que poderia ser trocado por partes mecânicas. Seria possível ao homem inventar-se a si mesmo?

Trechos interessantes:

"Ao acordar, fui pegar meu celular e ele não estava lá. Comecei a tatear pela mesinha de cabeceira, meus dedos se enfiando entre romances que eu não lia mais porque, quando se vira adepto dos e-books, não há mais volta." (pág.7/8)

"Não tinha nada em cima da mesinha de centro, mas embaixo havia um monte de obras de referência em que eu não tocava desde o surgimento do Google. Uma lista telefônica, por algum motivo. Uma lista telefônica. Três milhões de folhas feitas de árvores mortas empilhadas como um monumento à ineficiência do papel como plataforma de distribuição de informação." (pág. 8)

"Sou um sujeito inteligente. Reciclo meu lixo. Um dia encontrei um gatinho perdido e o levei para um abrigo. Às vezes faço piadas. Se há algo de errado com seu carro, posso dizer o que é só de escutá-lo. Gosto de crianças, menos das que são mal-educadas com adultos e cujos pais simplesmente ficam ali parados, sorrindo. Tenho um emprego. Possuo um apartamento próprio. Raramente minto. Pelo que sei, são qualidades que as pessoas procuram em alguém. Só posso pensar que deve ser outra coisa, algo que ninguém menciona, porque não tenho amigos, vivo longe da minha família e não namorei ninguém na última década. Um cara no Controle dos Laboratórios atropelou e matou uma mulher, e ele é convidado para as festas. Não entendo isso." (pág. 12/13)

"Finalmente ele ligou o carro e saiu cantando pneus. Fiquei vendo o carro virar a esquina voando, já a uns 70 ou 80 quilômetros por hora. Continuei meu caminho. Senti-me ligeiramente ofendido por uma pessoa tão má ter um carro tão bom. Porque o carro era o auge de mil  e tantos anos de progresso científico. Mas o sujeito era um babaca. Fiquei me perguntando quando isso havia acontecido: quando tínhamos começado a fazer máquinas melhores que pessoas." (pág. 60/61)

"-[...]Mas qual é o problema da área médica? O mercado é limitado a pessoas doentes. Imagine: você investe 30 milhões no desenvolvimento da maior válvula arterial do mundo e aí chega alguém e cura doenças cardíacas. Seria um desastre. Não para as... não para as pessoas, obviamente. Quero dizer para a empresa. Financeiramente. Sabe, esse é o tipo de risco comercial que deixa o pessoal lá de cima nervoso na hora de fazer grandes investimentos de capital." (pág. 86)

"Ninguém tem culpa de agir de forma violenta quando seu cérebro é inundado por vasopressina. É o que acontece, só isso. Você solta um copo, ele cai em direção ao chão. Talvez não seja esse o resultado que você queria, mas não culpe o copo. Não faça um julgamento moral porque a causa produziu um efeito. Somos máquinas biológicas. Temos necessidades movidas por substâncias químicas. Injete um determinado coquetel químico em uma freira, e ela vai começar a distribuir socos. Isso é fato." (pág. 103)

"Uma vez li que a gente precisa de duas coisas para ser feliz: entre saúde, dinheiro e amor, apenas duas dessas três opções. Eu me reconfortava com essa ideia enquanto tinha um corpo inteiro, um emprego e nenhum amor. Isso fazia com que eu sentisse que não estava perdendo muita coisa. Mas agora eu percebia que isso era uma bobagem sem tamanho, porque saúde e dinheiro não se comparavam de forma nenhuma a amor."(pág. 124)

"-Uma coisa que me surpreende neste lugar - disse Jason. -Nunca se ouve alguém dizer não deveria. Tipo, você não deveria fazer isso. Eles dizem que alguma coisa é impossível ou cara demais. Mas nunca errada. E sei que somos engenheiros, não filósofos. Li a declaração de missão. Mas às vezes eu gostaria que tivéssemos alguma documentação ética. Eu meio que gostaria que alguém muito sábio me dissesse que existem algumas coisas que não devem ser feitas ainda que seja possível fazê-las." (pág. 160)

"O Gerente jazia a poucos metros de distância. Ele não parecia nem um pouco melhor visto mais de perto. Fiquei enjoado, depois senti raiva, porque, se o Gerente tivesse Partes Melhores, estaria bem naquele momento. Estaria andando por aí em pernas mecânicas e eu não me encontraria naquela situação. Que tipo de CEO organizava um projeto para fabricar peças artificiais e não usava nenhuma delas? Era ridículo." (pág. 178)

"Há uma expressão que diz: Para quem só tem um martelo na mão, tudo na vida é prego." (pág. 183)

"-Quero que você diga que Lola é perfeita do jeito que ela é.
Hesitei. Será que existe alguém realmente perfeito? Ninguém pode ser perfeito na maior parte do tempo. Ninguém pode ser perfeito em apenas alguns momentos. Ou você é perfeito ou não é. E eu não acho que a biologia trabalhe com a noção de perfeição. Biologia é ciência aproximada. É uma questão de ser razoavelmente boa. Um vácuo é perfeito. Pi é perfeito. A vida não." (pág. 201)

"Existem cinco estágios de luto. O primeiro é a negação. Por exemplo: Minhas pernas não podem estar mortas. Não podem. O seguinte é a raiva: Você matou as minhas pernas, saia daqui, tire suas mãos de mim, etc. Esse estágio inclui gritos e demonstrações de raiva. Algumas acusações injustas. Lágrimas e sentimentos feridos.
Depois a barganha. É uma fase mais calma. Que pelo menos a bateria fique bem. Por favor, que a bateria ainda esteja funcionando. A quarta, depressão. Elas morreram. Eu morri. É uma espécie de autopiedade. Um fechamento em si mesmo. O último estágio é a aceitação. Não incluo exemplos porque eu ainda estava muito, muito longe da aceitação." (pág.207/208)

"Quando entrei na banheira, uma película de gordura se destacou da minha pele, formando um redemoinho ensebado de Mandelbrot. Eu era o centro de uma galáxia de suor e sujeira que ia se dissolvendo. Eu não havia percebido a intensidade do meu fedor. A gente pode se acostumar a qualquer coisa. Nosso cérebro só reclama quando ocorrem mudanças." (pág. 211/212)

"Mas o senhor sabe como são os usuários. Eles nunca dedicam o tempo necessário para compreender bem a tecnologia. Só querem aprender o essencial. O suficiente para fazer com que ela funcione. E isso simplesmente não é viável quando a tecnologia é tão poderosa. Acho que realmente chegamos ao ponto em que usuários nesse aspecto estão se tornando obsoletos." (pág. 244)

domingo, 3 de dezembro de 2017

Tocaia Grande

Título: Tocaia Grande
Autor: Jorge Amado
Páginas: 506

Natário é o capataz da fazenda Atalaia, uma grande propriedade cacaueira do sertão da Bahia, de propriedade do Coronel Boaventura. Ao realizar uma tocaia para atender aos "interesses" do Coronel, Natário achou que o local era adequado para o desenvolvimento de uma cidade. Dessa ideia surgiu um povoado que, dadas as circunstâncias, recebeu o nome de Tocaia Grande.

O livro relata a evolução da cidade, desde a primeira picada aberta até tornar-se uma cidade de fato. Começando como pouso de tropeiros, Tocaia Grande demorou muitos anos para se firmar como um povoado e depois como cidade. Para isso, muitos nomes foram extremamente importantes como o Capitão Natário, o turco Fadul, o negro Tição, além das prostitutas que faziam a vida no local. Tocaia Grande prosperou, mas não sem sacrifício.

Trechos interessantes:

"Ouvidos à escuta, tentando distinguir rumor de passos em meio à comoção da borrasca - o zunido do vento, o estrondo do trovão, o barulho medonho da queda de um pé de pau atingido pelo raio -, encharcados, cobertos de lama, distribuídos por detrás das árvores, no alto da colina, os cabras esperam, tensos. Habituados ao tempo longo das tocaias, temperados no perigo e na luta, íntimos da morte, ainda assim não conseguem impedir incômoda sensação de agonia diante da fúria da natureza, o fim do mundo. Procuram manter a calma, controlar o sobressalto; medo maior sentem de Natário: da intempérie poderão escapar com vida, de bala do capataz nem por milagre." (pág. 26)

"Chegado ao Brasil há quinze anos, Fadul viera para trabalhar e enriquecer. Enriquecer é a meta de todos os homens, para alcançá-la Deus lhes dá alma e inteligência. Uns cumprem à risca o mandato do Senhor, ganham dinheiro e se estabelecem, outros não conseguem; alma pequena, inteligência curta ou tão-somente pouca disposição para o trabalho, preguiça, malandrice." (pág. 39)

"Não cabia discussão: lavra nenhuma no mundo se compara à do cacau, nenhuma compensa tanto e tão rapidamente. Plantar cacau é o mesmo que semear ouro em pó para colher barrotes." (pág. 47)

"Dali não arredaria pé: nem por conselho de doutor, nem por ameaça de jagunço, nem por engodo de mulher. Ainda não nascera fêmea capaz de obrigá-lo a desistir, de mudar o curso do destino. Quem perde a cabeça por mulher a ponto de abandonar o uso da razão acaba na penúria, objeto de riso e de debique, avacalhado." (pág. 83)

"Com o filho doutor ali à mão, o Coronel não mais precisaria utilizar os serviços de outros bacharéis para cuidar-lhe os interesses nos fóruns e cartórios, tampouco depender de terceiros a quem eleger para cargos de confiança, a quem delegar comandos. Ficava a salvo de aleives e falsidades, de surpresas: assunto mais traiçoeiro do que a política só mesmo a justiça. Por isso andam sempre juntos, de mãos dadas." (pág. 117)

-[...]O que é que tu pensa? Que isso aqui é uma cidade? Isso aqui é uma tapera com uma bodega, quatro putas e com nós no barracão do Coronel: é cada um por si e Deus por todos. Se tu quiser, fica aqui com nós que nada vai assuceder.
Caminhou até junto à porta onde Bernarda estava aflita e tensa e lhe disse sem rancor:
-Mas se tu não quiser ficar, se arresolver se matar pelo turco, pode ir. Nós não sai daqui. Se eles vier nós ensina eles com quantos paus se faz uma cangalha. A gente só tem uma vida e uma morte pra gastar." (pág. 167)

"Cada vivente, por mais miserável e despossuído, por mais coitado e sozinho, tem direito a uma quota de alegria, não há sina que seja inteira de amargura. Não importa o custo, o preço a pagar. A própria Jacinta pagara preços absurdos por um capricho, a chama de um desejo. Nunca se arrependera nem mesmo quando, após fenecerem a excitação e o júbilo, a solidão medrara cinzenta e acerba. Afinal, que se leva da vida além da dolência e da ânsia, da agonia e da ventura de um xodó? Vale a pena correr o risco: por mais caro que seja o preço, será barato." (pág. 237)

"No fim da página, sob a assinatura: 'sua para sempre Maria José Batista', ela pusera uma quantidade de vírgulas, pontos finais, pontos de exclamação e de interrogação para ele espalhar na carta onde conveniente fosse." (pág. 288)

"Nos cabarés, os fazendeiros espoucavam champanha, presenteavam as comborças com anéis de brilhante, pulseiras de ouro, colares de pérolas. Para um coronel ser deveras respeitado, devia possuir casa civil e casa militar: na civil, esposa austera e religiosa, rainha do lar, devotada aos cuidados da família, aos deveres de mãe; na militar, amante vistosa e chique, posta aos trinques, boa de cama, alegre companhia, para deleite da vista e regalo do corpo e para fazer inveja." (pág. 349)

"No balcão de seu próspero negócio, Fadul Abdala ouvia os relatos assustados, os maus presságios. Todos eles, os fazendeiros, os alugados, as raparigas e o tocador de harmônica preocupavam-se com a floração das roças, os incipientes bilros nascendo nos cacaueiros, com o temporão e a safra.
Escutando, constatava que ninguém se referia ao destino dos viventes. Calculavam o montante dos prejuízos causados pela enchente do rio Cachoeira, mas com a sorte dos retirantes sem pouso e sem comida, apinhados em Ferradas, ninguém se preocupava nem deles se compadecia. (pág. 354/355)

"Zilda balançou a cabeça, em concordância: não estavam discutindo, apenas conversando. Conhecia o marido e sua maneira de pensar: quem tem mando e autoridade, tem obrigações. De nada adiantaria argumentar, menos ainda se opor. Cumprira sua parte, expusera seus temores: a ele competia decidir, a ela obedecer." (pág. 396)

"-Me disseram que Venturinha ofereceu lhe pagar o que você pedisse.
-Coronel, eu penso que todo homem tem vontade de ser dono de sua sina. Quando eu comecei a ganhar a vida, acompanhando romeiro lá no São Francisco, ouvi o povo dizer que a sina da gente tá escrita no céu e ninguém pode mudar, mas meu pensar é diferente. Acho que cada criatura tem de cuidar de si e sempre tive vontade de ser dono de mim mesmo. Servi o Coronel por mais de vinte anos: tinha dezessete quando arribei por aqui, já festejei quarenta e dois. Nunca prometi servir à viúva ou ao filho. Nem nunca ele me pediu." (pág. 444)