Autor: Gonçalo Luiz de Melo e Adriana Rodrigues Domingues
Páginas: 264
O livro nasceu do trabalho realizado por uma psicóloga e um advogado junto
a um grupo de idosos em São Paulo. O objetivo é incentivar cada participante a
contar trechos de sua vida ao demais integrantes do grupo, fortalecendo o
vínculo e melhorando o entrosamento entre os participantes.
O livro não é formado somente pelas histórias, mas por todo o contexto
que cerca o projeto, mostrando as várias etapas e as finalidades específicas de
cada ação. As histórias são apresentadas da forma mais fiel possível,
preservando as singularidades de cada narrador e demonstram, acima de tudo,
garra e determinação para superar os obstáculos que a vida lhes apresenta.
Trechos interessantes:
Sempre incentivamos a entrada de novos participantes, a inserção de
estagiários ou outros profissionais, a participação de amigos, amigas ou
familiares que queiram conhecer o projeto; nesses momentos, convidávamos os
frequentadores mais antigos a explicar a proposta aos recém-chegados.
Estimulamos, sobretudo, que as relações grupais se estendessem para além do
espaço institucional, incentivando-os a visitar os participantes que estavam
doentes ou ausentes sem que soubéssemos os motivos, ou a se encontrar no meio
do percurso e caminhar juntos até a instituição, ou, ainda, a se encontrar na
casa de algum deles para tomar um café. Quando algum participante queria
desistir, por qualquer motivo, deixávamos o convite ao retorno sempre
disponível e afirmávamos, literalmente, que ele não estava “perdendo a vaga”.
(pág. 43)
As histórias contidas no livro Conversas
e memórias: fragmentos requerem um jeito especial de apresentação. Não é
suficiente resumir cada uma a partir da forma como foram registradas no livro,
extraindo trechos, recortando falas, realizando sínteses de cada narrativa para
que o leitor possa conhecer algumas poucas e fragmentadas passagens. Também não
é suficiente apresentar as minhas próprias anotações, tecidas a partir dos
trechos que julgo mais importantes, sem a preocupação de contar como haviam
sido relatados. Tanto em uma como em outra forma de apresentação, corro o risco
de deixar escapar a riqueza dos acontecimentos, a maneira poética como
descrevem suas vidas, os detalhes com que contam uma cena da infância ou as
características dos pais e companheiros; corro o risco de, resumindo os
acontecimentos, apresentar apenas aquilo que meu olhar e meu interesse foram
capazes de enxergar. (pág.100)
A parteira analisou bem a minha
barriga e disse: “Olha Elza, eu pensei bem, como é o seu primeiro filho, a
gente não pode facilitar. Se acontecer alguma complicação durante o parto nós
não temos recursos. Acho melhor a gente ir pro hospital. ” Quando estava
saindo, notei que a porta da cozinha da casa dos meus pais, que sempre estava aberta
e ficava de frente pra minha sala, com sua cortininha de xadrez verde, agora
estava fechada. Ao passar, pelo corredor lateral, vi minha tia Anunciatta,
italiana já velhinha, que morava com meus pais nessa mesma casa, com um lenço
na cabeça, chorando num canto do quintal. Naquele momento tive a certeza, mas
não pude desabafar com ninguém. Antes de ver minha filha nascer, meu pai, o
velho Amadeu, já havia ido embora. (pág. 114)
A delicada arte de narrar a própria história requer, contudo, uma
delicada arte de reconta-la, apresenta-la em seus acontecimentos e
singularidades, esquivando-se do risco de categorizá-las para, em seguida,
resumi-las, simplificá-las e interpretá-las. Talvez como um antídoto à perda do
valor da narrativa, presente em nosso mundo contemporâneo, o desejo que surgiu
em nós de ouvir novamente as histórias e recontá-las em um livro foi produzido
pelo próprio efeito de ouvi-las: contá-las de novo para que elas não se percam,
para que se gravem o mais profundamente em cada ouvinte e para que este se
apodere o mais espontaneamente do dom de narrá-las [...]. (pág. 120)
A velhice costuma apresentar-se como um período em que as recordações
emergem com especial energia, e não necessariamente por causa da solidão nem da
aposentadoria. Recordar pode ser útil para fazer um balanço ou para tentar
entender, ruminando a existência passada. Mas uma recordação nunca terá
precisão absoluta a respeito do passado: ela tende a se aproximar da fantasia,
em doses maiores ou menores. Ao recordar, nós somos sempre traidores da
realidade: tendemos a dar tinturas subjetivas a fatos banais. Nosso primeiro
passeio escolar enche-se de coloridos, aventuras, descobertas relacionadas mais
às emoções sentidas do que aos fatos reais. (pág. 139)
Em Auschwitz-Birkenau, até hoje se mantêm os antigos campos de
concentração nazistas, onde milhares de pessoas foram presas e exterminadas.
Para as crianças alemãs de hoje, faz parte do seu aprendizado conhecer esses locais.
Os campos recebem gente do mundo inteiro, que costuma se abraçar, mesmo não se
conhecendo, em sinal de respeito e solidariedade. Anualmente, peregrinações de
judeus de todas as nações ali comparecem para reverenciar os mortos, mas também
para contemplar o passado de extraordinária desumanidade e assim atualizar a
memória do Holocausto. Depois do ataque atômico americano em 1945, que quase
tirou-a do mapa, a cidade de Hiroshima se reconstruiu, mas deixou intactas
muitas marcas da destruição. Criou um memorial para celebrar a paz, e se tornou
a capital mundial do pacifismo. Todo dia 6 de agosto, milhares de pessoas
acorrem à cidade para rememorar a data do ataque, com a finalidade de avivar a
lembrança e, assim, garantir que o pesadelo nuclear não se repita. São dois
exemplos grandiosos de como é necessário confrontar-se com memórias trágicas
que não podemos esquecer. (pág. 140/141)
“A melhor coisa que poderia acontecer na minha vida foi isso,
encontrar um lugar, um espaço pra dividir com os outros minhas recordações, não
com saudosismo, mas como uma verdade que é sempre presente e é tão bom falar!
Tem gente que se arrepende coisas que fez; eu não, se tenho que me arrepender é
de muita coisa que não pude fazer. ” (pág. 172)
“Os antigos diziam: casamento é comer um saco de sal juntos! Não sei
se no sentido de conservar a união ou temperar a vida. Acho que casei muito
cedo, sonhei muito, idealizei tanto que todo o sal acabou sobrando só pra mim.
” (pág. 177)
Ela não voltou mais para Alagoas, mas ainda sonha. Sonhar não lhe
custa nada e por isso toda noite pode viajar para o Nordeste sem nenhuma
despesa, apenas deixa um copo d’água ao lado da cama, caso no meio da noite o
sol do caminho a importune. Se o sonho da mocinha era conhecer as maravilhas do
Sul, o da mulher agora é voltar, sem nenhum medo do passado. (pág. 213)
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