Autor: José J. Veiga
Páginas: 160
O autor nos apresenta uma história de Canudos, mas de forma “retificada”.
Nessa versão Antônio Conselheiro não morre, mas, sim, troca de lugar com um
morto e, com isso, consegue despistar as tropas da polícia que, ansiosas para
encerrar a caçada, aceitaram o corpo apresentado como o de Conselheiro.
Enquanto isso Conselheiro, ajudado por poucos, mas fiéis colaboradores, foge
com a ideia de fundar uma nova Canudos.
Agora é preciso convencer as pessoas de que Conselheiro está vivo, o
que não se mostrará uma tarefa fácil. E ele, como líder, deve agora avaliar o
que não deu certo em Canudos para não repetir no novo arraial a ser criado.
A ideia é interessante e o desenrolar da história é bem agradável. Livro
pequeno, com uma linguagem típica da região, o que faz com que a leitura avance
rapidamente e de forma prazerosa.
Trechos interessantes:
Mais uma vez Bernabé viu no olhar do Conselheiro, que até então
parecia alheio a tudo, afundado em seus pensamentos ou em suas orações, viu
aquele mesmo olhar de aprovação de antes, o que o fez pensar que o velho, atrás
daquela cortina de sonolência e desinteresse, estava era muito atento ao que se
passava em volta. Podia ser então que quando ele parecia distraído, cochiloso,
caducante, era porque tinha se acendido para o lado de dentro e entrado em
comunicação com alguma força invisível para os outros e da qual recebia
sustento para a alma e para o corpo. (pág. 21)
Mas não podiam negar que a presença do Conselheiro era uma espécie de
grude forte, que segurava todos; sem ele nem estariam ali. Era ele quem traçava
o rumo, dizia o que era acertado fazer, o que era perigoso. Sem ele o bando
desfacelava, tantos seriam os desafinos. Ele tinha um jeito de influir nas
pessoas para elas o respeitarem de vontade própria, sem que ele precisasse
falar grosso. Falar grosso aliás não resolve emperrações, a pessoa que recebe o
ronco obedece se não tem outro jeito, mas fica de sobreaviso; e na primeira
vaza em que pega o outro em quebra, vai à forra com juros. Grito impõe
obediência, mas não impõe respeito. (pág. 26)
Disse há pouco que era preciso evitar os erros de Canudos, formar
outro arraial mais voltado para as necessidades das pessoas, não se perdendo
tanto tempo com rezas. No novo arraial ia-se rezar, claro, mas não como em
Canudos. As rezas agora iam ser entoadas em agradecimento e regozijo, não mais
para pleitear graças impossíveis. Porque de duas uma, falou o Conselheiro: ou o
castigo é merecido, e decorre de alguma lei superior que não foi observada, e
nesse caso nem Deus pode abrir exceção; ou é injusto. Mas considerar um castigo
injusto é blasfêmia do castigado; pois não sabe ele que Deus é justo? Então é
perda de tempo rezar pedindo abertura de buracos no pano da lei. Se uma pessoa
ou um povo tem direito a um benefício, não será ofensa a Deus, ou no mínimo
impertinência, estar cutucando ele com rezas para ele não se esquecer de
deferir um direito? (pág. 27)
Aquele era um assunto que precisava ser resolvido o quanto antes. A
posição dele agora era como a de um carreiro que pretende mudar de caminho, mas
para isso precisa recuar os bois. Boi de carro não sabe andar para trás. Parar
o carro era o que ele tentava fazer como primeira medida. Depois uma temporada
de descanso para os homens esgotarem o impulso interior de movimento, como
acontece com os bois de carro, até eles ficarem impacientes para andar de novo.
E durante a parada, aquela doutrinação sistemática e sutil para os induzir a
aceitarem o novo caminho. (pág. 51)
Onde seria esse mundo novo, ele não sabia ainda, e não tinha pressa de
saber. Em toda a sua vida ele nunca fizera planos precisos para o futuro, nem
se impacientara com a aparente lentidão da natureza e do mundo. Mesmo antes de
conhecer as palavras do pregador, já achava que tudo tem o seu tempo, e que
para todo propósito há um tempo e um modo. Que adianta querer apressar o
amadurecimento do ouricuri, ou o dia do primeiro voo do carcará? Desde cedo se
habituara a acreditar no destino, para ele uma espécie de desígnio que a pessoa
recebe ao nascer e que terá de cumprir queira ou não. Assim, para que ter
pressa? Vamos com os ventos, eles sabem o rumo. (pág. 55)
O sonho de viver em lugares altos nasceu com a humanidade. Mas sempre
esbarrou em dificuldades que só aparecem quando o sonhador começa a pôr em
prática o que sonhou. Essas dificuldades não são poucas, nem pequenas, nem
fáceis de contornar – tanto que não há muitas cidades altas na história. Fortalezas
e castelos sim, mas não cidades. Se a altura é vantagem contra assaltos, é
também gravame em caso de cerco. Depois, lugar alto n]ao tem variedade de
material de construção, o que falta precisa ser levado para cima a força de
braços e costas, um desgaste de energia que renderia melhor se aplicado na
construção propriamente. E o de comer? E o de beber? Água não gosta de subir
morro. Só em sonho a vida no alto é amena. E tem ainda a lei da gravidade, que
nunca descansa no empenho de puxar tudo para baixo o tempo todo. Não foi por
acaso que nossos antepassados remotos desistiram de viver em cima de árvore.
(pág. 76/77)
Quem carrega arma para onde vai, parece que a presença dela, o peso, o
incômodo mesmo, acabam dando ao portador alguma certeza de que está garantido e
forrado, de que está por cima. E mais: essa certeza parece que dá na pessoa que
carrega arma uma coceira, uma vontade de recorrer à arma ao menor pretexto,
como para justificar a posse dela – se não é para usar, por que carrego isso?
Já as pessoas que nesta vida só querem viver sem estorvar a vida dos outros, essas
não têm fascinação pelo carreto de armas. Elas acreditam e confiam mais na
inteligência e na parlamentação. (pág. 90)
—Olha, seu Joaquim. Falta de alguém eu já senti muito, porém foi de
minha mãe. Mas faz tanto tempo que perdi ela, que já me acostumei. Hoje em dia
só sinta falta é de um fuminho cheiroso quando não tenho, de um pedaço de
toicinho pra temperar um feijão, de um punhadinho de açúcar pra adoçar o café,
essas coisas miúdas que a gente aprende a apreciar e cujas aprende também a
abrir mão quando vasqueiam. (pág. 125)
A música tem muito a ver com magia, e deve corresponder a um anseio
íntimo do ser humano desde o princípio, uma saudade de qualquer coisa que ficou
longe, nas origens talvez cósmicas. O troglodita que primeiro bateu com um pau
ou um osso numa superfície dura procurava alguma coisa que lhe fazia falta e
que ele não sabia o que era. Bateu, procurando, encontrou: era o som feito pelo
homem. O som primeiro nasceu no íntimo, como necessidade, e tinha de ser
encontrado. Encontrado, passou a existir. Onde não existe, é reinventado. Ou
redescoberto. (pág. 136)
Quanto aos lápis, é curioso o que acontece. Depois que o João Faber o
inventou, nunca faltou lápis no mundo. Por mais que se perca, ou se mastigue,
ou se quebre, ou se empreste, ou se desvie para coleções, ainda fica lápis
sobrando. Em qualquer casa, por mais distante ou isolada, abre-se uma gaveta
procurando uma tesoura, um botão, um comprimido, encontra-se um lápis ou dois.
Vai-se limpar embaixo de um móvel, olha lá um lápis esquecido. Até parece que
eles se reproduzem. Se duvidar, há mais lápis do que gente no mundo. E quando
esta nossa civilização acabar, e ficar esquecida, e depois começar a ser
escavada, os arqueólogos vão quebrar a cabeça para descobrir para que serviam
esses artefatos, e poderão até ser considerados objetos rituais. Se um dia
faltar madeira para revesti-los, não tenham dúvida que outro material será
descoberto para substituí-la; o que não pode é faltar lápis. (pág. 148/149)