Autor: Alexandre Costa Nascimento
Páginas: 406
O Tour d’Afrique é uma prova
ciclística que percorre a África, desde o Cairo até a Cidade do Cabo, com uma
distância aproximada de 12.000 quilômetros. É uma prova realizada anualmente,
desde 2003, e conta sempre com a participação de ciclistas de várias partes do
mundo, profissionais ou amadores.
“Mais que um leão por dia” relata
a trajetória do primeiro brasileiro a participar da prova. O livro apresenta,
com detalhes, as dificuldades e dramas vividos pelos participantes, mostrando
sempre a garra, determinação e força de vontade que os impulsiona a tão árdua
tarefa. Além disso também são mostrados os costumes, tradições e curiosidades
de cada um dos países que o tour atravessa. Em suma, uma rara oportunidade de
ver as belezas e excentricidades que a África nos proporciona, que tem um povo
simples e sofrido, mas solidário e amigável.
Trechos: interessantes:
Sempre que me perguntam se é muito
caro participar do Tour d’Afrique, respondo com outra pergunta: quanto você
estaria disposto a pagar para realizar o sonho da sua vida? A questão aqui é
que não se trata de preço, mas sim de valor. A verdadeira riqueza que esse ripo
de experiência proporciona ultrapassa qualquer cálculo monetário. Mas, para
colocar um parâmetro, basta dizer que o custo total para participar da
expedição equivale ao preço de um cano popular zero quilómetro financiado.
(pág. 15)
Cresci ouvindo minha mãe dizer
que as viagens que realizamos e os livros que lemos são os únicos tesouros que
ninguém, jamais, poderá nos roubar um dia. (pág. 16)
Após ler a lista de doenças de
risco para quem se dispõe a atravessar dez países da África, a música Pulso,
dos Titãs, acaba se tomando uma mera canção de ninar até mesmo para o mais
fervoroso dos hipocondríacos. (pág. 23)
Minha esperança de respirar um
pouco de ar puro é logo frustrada. A poluição é um dos maiores problemas do
Grande Cairo. Tanto que o hotel cobra US$ 5 a mais para quartos “sem vista para
a poluição” – o que no final das contas não passa de um grande engodo, já que é
praticamente impossível ver a cor do céu de qualquer ângulo dada a espessa
camada de poluição. A fonte de boa pane da fumaça cinza que encobre o Cairo são
os escapamentos dos automóveis velhos que circulam pelas ruas. (pág. 35/36)
No portal principal [da mesquita],
é preciso descalçar os sapatos para poder entrar. Para um muçulmano, a sola de
um sapato é uma das coisas mais sujas, degradantes e repulsivas que existem.
Tanto que, no Egito, o simples ato de cruzar as pernas deixando à mostra a sola
do sapato – algo comum e corriqueiro no Ocidente – pode ser tomado como um
gesto extremamente grosseiro e ofensivo. Seria impensável, portanto, levar algo
tão imundo para dentro de um dos lugares mais sagrados para o islã. (pág. 39)
A paisagem do deserto se resume
praticamente à estrada, ao horizonte, areia e pedras. Mesmo assim, pedalar
sozinho neste cenário torna-se uma experiência intensa em todos os sentidos.
Observar os finos grãos de areia desenhando a paisagem, moldada há milênios
pelo mesmo vento que sopra em seu rosto, é fascinante. O silêncio e a monotonia
da paisagem ampliam os horizontes ao me colocar em contato com meus pensamentos
e sentimentos mais profundos: medos, incertezas, sonhos e virtudes; tudo aflora
e estimula um verdadeiro estado de meditação sobre duas rodas, A epifania só é
interrompida quando o deserto cobra o seu tributo em forma de sede, suor e dor
física. (pág. 60)
Ao ver a bandeira do Brasil na
manga do meu uniforme, um menino que veste a camisa da seleção brasileira com o
nome do jogador Kaká me convida para entrar em seu time. Recuso o convite,
alegando que estou com a perna machucada. Apesar de brasileiro, minha habilidade
futebolística não me qualifica nem mesmo para ficar no banco de reserva da
equipe de Kom Ombo. Assim, evito fazer feio diante das crianças egípcias e de
manchar para sempre a reputação internacional do futebol brasileiro. (pág. 68)
Alguns reclamam e praguejam
contra tudo. Mas, para mim e para a imensa maioria, a sensação é de satisfação
plena. Atravessar pedalando a tempestade de areia é, sem a menor sombra de dúvida,
uma das maiores aventuras que alguém pode enfrentar em a vida. (pág. 97)
Viajar de bicicleta não tem a ver
com chegar ao destino, e sim com desfrutá-lo ao máximo. Não existe outra forma
de turismo que permita um contato tão intenso com a população local, conhecer a
estrada e sentir a paisagem com todos os sentidos ao mesmo tempo. Só a
bicicleta permite ao viajante parar sem preocupação quando tem vontade,
descansar sob a sombra de uma árvore ou apenas apreciar a vista de um grande
vale. (pág. 134)
A sociedade massai é patriarcal e a poliginia – quando um homem pode
se casar com várias mulheres, mas as mulheres devem ter apenas um único
parceiro – é um traço marcante da cultura deste povo.
O número máximo de esposas para
um homem ê limitado apenas pelo poder do massai em prover alimentos às suas
mulheres e filhos. Como a dieta massai consiste basicamente em leite e carne, é
o número de cabeças de gado que mostra o poder e a riqueza de cada homem dentro
da tribo. (pág. 206)
O nervosismo volta à mesa quando ouvimos um forte urro de animal vindo
de longe. Todos ficam em silêncio por alguns instantes. Quando o som volta a se
repetir, mais forte e mais claro, Martin crava de forma categórica que aquele é
o rugido territorial um leão. “Mas não há com o que se preocupar. Dá para saber
que ele está a cerca de três quilômetros de distância do ponto de onde estamos”,
diz o guia, tentando nos tranquilizar. “Além disso, os rangers fazem ronda
armada durante a madrugadas e ataques ao acampamento são raros, quase
inexistentes”, completa.
É justamente esta margem de
probabilidade expressa pela palavra “quase” que nos preocupa. (pág. 208)
Já tendo pedalado a maior quilometragem em apenas um dia em toda a
minha vida - em condições de saúde extremamente limitantes -, fico com a
sensação de que a última gota de energia do meu corpo se esvaiu.
A esta altura, pedalar os dez quilômetros que ainda restam me parece tão
ou mais assustador do que pensar em pedalar 183 quilômetros no começo do dia –
até porque, pela manhã, jamais poderia imaginar que seria capaz de conseguir
alcançar sequer o caminhão do almoço.
Depois de tudo isso, chegar à
bandeira final pedalando traz uma satisfação indescritível. Junto, vem a
certeza de que não dá para desistir dos grandes objetivos sem ao menos tentar –
pelo menos não enquanto ainda restar o último pingo de esperança. Cumprir a
etapa foi difícil e tudo pareceu uma loucura. Mas é preciso reconhecer: fizemos
um bom trabalho! (pág. 273)
Dizem que para saber o quão alguém
é feliz, basta lhe fazer a pergunta: “Quando foi a última vez que você fez algo
pela primeira vez?”. Segundo a tese, quanto mais recente for o episódio a que
se refere a resposta, maior a chance de a pessoa ser feliz. Os dias de pedal
pela África, que a cada instante oferecem a oportunidade de fazer, viver e
experimentar algo inédito, ajudam a provar a validade do teste. (pág. 308)
O Brasil está fora do mapa da Tour d’Afrique Ltd., empresa que
organiza expedições ciclísticas que percorrem mais de 60 países nos cinco
continentes do planeta. A companhia que encara a instabilidade política do Quênia,
o risco de ataques da guerrilha colombiana ou os regimes ditatoriais do Irã e
do Sudão não tem coragem suficiente para enfrentar o perigo que representa um
brasileiro atrás de um volante.
— Os motoristas brasileiros
brincam com a vida e tentam passar o mais próximo possível dos ciclistas. O
país não é seguro o suficiente para receber um de nossos tours — avalia Henry
Gold. (pág. 335/336)
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