domingo, 17 de fevereiro de 2019

Mais que um leão por dia


Título: Mais que um leão por dia
Autor: Alexandre Costa Nascimento
Páginas: 406

O Tour d’Afrique é uma prova ciclística que percorre a África, desde o Cairo até a Cidade do Cabo, com uma distância aproximada de 12.000 quilômetros. É uma prova realizada anualmente, desde 2003, e conta sempre com a participação de ciclistas de várias partes do mundo, profissionais ou amadores.

“Mais que um leão por dia” relata a trajetória do primeiro brasileiro a participar da prova. O livro apresenta, com detalhes, as dificuldades e dramas vividos pelos participantes, mostrando sempre a garra, determinação e força de vontade que os impulsiona a tão árdua tarefa. Além disso também são mostrados os costumes, tradições e curiosidades de cada um dos países que o tour atravessa. Em suma, uma rara oportunidade de ver as belezas e excentricidades que a África nos proporciona, que tem um povo simples e sofrido, mas solidário e amigável.

Trechos: interessantes:

Sempre que me perguntam se é muito caro participar do Tour d’Afrique, respondo com outra pergunta: quanto você estaria disposto a pagar para realizar o sonho da sua vida? A questão aqui é que não se trata de preço, mas sim de valor. A verdadeira riqueza que esse ripo de experiência proporciona ultrapassa qualquer cálculo monetário. Mas, para colocar um parâmetro, basta dizer que o custo total para participar da expedição equivale ao preço de um cano popular zero quilómetro financiado. (pág. 15)

Cresci ouvindo minha mãe dizer que as viagens que realizamos e os livros que lemos são os únicos tesouros que ninguém, jamais, poderá nos roubar um dia. (pág. 16)

Após ler a lista de doenças de risco para quem se dispõe a atravessar dez países da África, a música Pulso, dos Titãs, acaba se tomando uma mera canção de ninar até mesmo para o mais fervoroso dos hipocondríacos. (pág. 23)

Minha esperança de respirar um pouco de ar puro é logo frustrada. A poluição é um dos maiores problemas do Grande Cairo. Tanto que o hotel cobra US$ 5 a mais para quartos “sem vista para a poluição” – o que no final das contas não passa de um grande engodo, já que é praticamente impossível ver a cor do céu de qualquer ângulo dada a espessa camada de poluição. A fonte de boa pane da fumaça cinza que encobre o Cairo são os escapamentos dos automóveis velhos que circulam pelas ruas. (pág. 35/36)

No portal principal [da mesquita], é preciso descalçar os sapatos para poder entrar. Para um muçulmano, a sola de um sapato é uma das coisas mais sujas, degradantes e repulsivas que existem. Tanto que, no Egito, o simples ato de cruzar as pernas deixando à mostra a sola do sapato – algo comum e corriqueiro no Ocidente – pode ser tomado como um gesto extremamente grosseiro e ofensivo. Seria impensável, portanto, levar algo tão imundo para dentro de um dos lugares mais sagrados para o islã. (pág. 39)

A paisagem do deserto se resume praticamente à estrada, ao horizonte, areia e pedras. Mesmo assim, pedalar sozinho neste cenário torna-se uma experiência intensa em todos os sentidos. Observar os finos grãos de areia desenhando a paisagem, moldada há milênios pelo mesmo vento que sopra em seu rosto, é fascinante. O silêncio e a monotonia da paisagem ampliam os horizontes ao me colocar em contato com meus pensamentos e sentimentos mais profundos: medos, incertezas, sonhos e virtudes; tudo aflora e estimula um verdadeiro estado de meditação sobre duas rodas, A epifania só é interrompida quando o deserto cobra o seu tributo em forma de sede, suor e dor física. (pág. 60)

Ao ver a bandeira do Brasil na manga do meu uniforme, um menino que veste a camisa da seleção brasileira com o nome do jogador Kaká me convida para entrar em seu time. Recuso o convite, alegando que estou com a perna machucada. Apesar de brasileiro, minha habilidade futebolística não me qualifica nem mesmo para ficar no banco de reserva da equipe de Kom Ombo. Assim, evito fazer feio diante das crianças egípcias e de manchar para sempre a reputação internacional do futebol brasileiro. (pág. 68)

Alguns reclamam e praguejam contra tudo. Mas, para mim e para a imensa maioria, a sensação é de satisfação plena. Atravessar pedalando a tempestade de areia é, sem a menor sombra de dúvida, uma das maiores aventuras que alguém pode enfrentar em a vida. (pág. 97)

Viajar de bicicleta não tem a ver com chegar ao destino, e sim com desfrutá-lo ao máximo. Não existe outra forma de turismo que permita um contato tão intenso com a população local, conhecer a estrada e sentir a paisagem com todos os sentidos ao mesmo tempo. Só a bicicleta permite ao viajante parar sem preocupação quando tem vontade, descansar sob a sombra de uma árvore ou apenas apreciar a vista de um grande vale. (pág. 134)

A sociedade massai é patriarcal e a poliginia – quando um homem pode se casar com várias mulheres, mas as mulheres devem ter apenas um único parceiro – é um traço marcante da cultura deste povo.
O número máximo de esposas para um homem ê limitado apenas pelo poder do massai em prover alimentos às suas mulheres e filhos. Como a dieta massai consiste basicamente em leite e carne, é o número de cabeças de gado que mostra o poder e a riqueza de cada homem dentro da tribo. (pág. 206)

O nervosismo volta à mesa quando ouvimos um forte urro de animal vindo de longe. Todos ficam em silêncio por alguns instantes. Quando o som volta a se repetir, mais forte e mais claro, Martin crava de forma categórica que aquele é o rugido territorial um leão. “Mas não há com o que se preocupar. Dá para saber que ele está a cerca de três quilômetros de distância do ponto de onde estamos”, diz o guia, tentando nos tranquilizar. “Além disso, os rangers fazem ronda armada durante a madrugadas e ataques ao acampamento são raros, quase inexistentes”, completa.
É justamente esta margem de probabilidade expressa pela palavra “quase” que nos preocupa. (pág. 208)

Já tendo pedalado a maior quilometragem em apenas um dia em toda a minha vida - em condições de saúde extremamente limitantes -, fico com a sensação de que a última gota de energia do meu corpo se esvaiu.
A esta altura, pedalar os dez quilômetros que ainda restam me parece tão ou mais assustador do que pensar em pedalar 183 quilômetros no começo do dia – até porque, pela manhã, jamais poderia imaginar que seria capaz de conseguir alcançar sequer o caminhão do almoço.
Depois de tudo isso, chegar à bandeira final pedalando traz uma satisfação indescritível. Junto, vem a certeza de que não dá para desistir dos grandes objetivos sem ao menos tentar – pelo menos não enquanto ainda restar o último pingo de esperança. Cumprir a etapa foi difícil e tudo pareceu uma loucura. Mas é preciso reconhecer: fizemos um bom trabalho! (pág. 273)

Dizem que para saber o quão alguém é feliz, basta lhe fazer a pergunta: “Quando foi a última vez que você fez algo pela primeira vez?”. Segundo a tese, quanto mais recente for o episódio a que se refere a resposta, maior a chance de a pessoa ser feliz. Os dias de pedal pela África, que a cada instante oferecem a oportunidade de fazer, viver e experimentar algo inédito, ajudam a provar a validade do teste. (pág. 308)

O Brasil está fora do mapa da Tour d’Afrique Ltd., empresa que organiza expedições ciclísticas que percorrem mais de 60 países nos cinco continentes do planeta. A companhia que encara a instabilidade política do Quênia, o risco de ataques da guerrilha colombiana ou os regimes ditatoriais do Irã e do Sudão não tem coragem suficiente para enfrentar o perigo que representa um brasileiro atrás de um volante.
— Os motoristas brasileiros brincam com a vida e tentam passar o mais próximo possível dos ciclistas. O país não é seguro o suficiente para receber um de nossos tours — avalia Henry Gold. (pág. 335/336)

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