quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

Título: O colecionador de colecionadores
Autor: Tibor Fischer
Páginas: 216
 
 A personagem principal do livro é um vaso de cerâmica. Isso mesmo, um vaso! O livro narra as "reflexões e memórias" do vaso, durante toda sua existência, com relatos sobre seus antigos donos.

 Pessoalmente imagino que, para um conto, o tema seria fascinante. Já para um livro tenho minhas dúvidas, pois a história começa a ficar muito repetitiva e, embora as "memórias" sejam diferentes, no fundo é tudo mais do mesmo.

 Trechos interessantes:

 Tudo já este sob ou perto de um rio qualquer. Os rios, se você os observa com bastante paciência, tremeluzem e cortam como raios lentos, sem brilho. A água, tal como um bêbado desajeitado, já mijou e se arrastou por todo este planeta. (pág. 10)

—Então qual é o seu trabalho? — pergunta Nikki, trocando sua campanha do coração para a cabeça.
—Consultora de arte — diz Rosa. Nikki faz ahhhhhh com os olhos para demonstrar sua admiração e para expressar como Rosa era sortuda por ter esse trabalho. Sua admiração teria sido igualmente ferrenha se Rosa tivesse declarado que seu ofício era ser gari ou evisceradora de aves. (pág. 24)

A despeito de ter acabado de folhear um catálogo de leilão, não passou pela cabeça de Nikki me considerar como antiguidade. Este é o problema da arte e, na verdade, de muitas outras coisas; é preciso que você corresponda às expectativas. Tenham pena das coisas que não têm preço e que foram jogadas no lixo, os tesouros que foram derretidos, os pensamentos magistrais que acabaram limpando o rabo dos ignorantes. (pág. 40/41)

Ele não se aporrinhava muito por causa do nariz. Primeiro porque, embora as pessoas estivessem prontas para morrer por causa de uma ideia, não estavam, segundo minhas observações, doidas para morrer por causa de uma piada. Além do que, seu nariz era de tamanha magnitude que era óbvio demais para merecer uma piada. O exagero pode fazer com que uma coisa banal fique engraçada, porém o superexagero o traz de volta à seriedade. Era mais ou menos como dizer "o sol está brilhando hoje" e esperar que as pessoas rissem. (pág. 43/44)

—Não parece que vale muito.
—O que esperava? Tabuletas com dólares nos lados? Isso já era belo quando a Europa nada mais era senão florestas, quando o Egito era verdejante, quando Troia não passava de algumas cabanas de pescadores, quando Atenas era algumas oliveiras na encosta de um morro, quando os faraós coçavam a cabeça à cata de boas ideias arquitetônicas, antes do dilúvio. Esta é uma obra fruto da mão humana numa época inimaginável, tão diferente da nossa, mas talvez não tão diferente... quando as pessoas ainda compartilhavam os mesmos desejos. (pág. 62)

—Ah, e tem mais uma coisa. Eu realmente não quero ser a pessoa a lhe dizer isso, porém o erro que você comete é ficar buscando a felicidade. O que você deveria buscar é o tipo certo de infelicidade. (pág. 69)

Existem pessoas que dizem que o círculo é um símbolo do que não começa e não tem fim. Pelo contrário, é símbolo que mostra que o começo e o fim podem estar em qualquer ponto. (pág. 116)

—O dinheiro — diz Marius — não consegue comprar as coisas que você realmente deseja. Quando eu era criança, nós não tínhamos nada. Eu não sabia na época. Você presume que aquilo que tem é o seu quinhão. Eu achava que todo mundo não tinha muita coisa para comer e passava frio. É só agora, quando revejo aquele quarto escuro gelado em que eu ficava com minha mãe, que consigo perceber o que ele era. Não importa o quanto você coma, não consegue levar a comida até a época em que passava fome. Nada consegue mudar isso. (pág. 142)

—[...] Combatemos numa guerra contra o esquecimento. Toda vez que alguém nos esquece, morre uma parte nossa. (pág. 143)

Chega um ponto em que você quer desistir, ou porque você não está mais ansioso em obter aquilo que quer, ou porque sabe que não vai obtê-lo, ou que vai custar muito mais do que devia, mas você prossegue, não devido à força, e sim por inércia, porque não há mais nada que possa fazer. (pág. 159)

Deviam ensinar coisas importantes pra gente no colégio. A Batalha de Hastings não é útil, pelo menos não da maneira como é ensinado. Se nos ensinassem que a vida se resume a gente ser sacaneada por gente mais bem-sucedida e bem-vestida, isso talvez fosse de alguma ajuda. (pág. 198)

—Nunca vi nenhum sentido em levar um homem durante as férias — diz Nikki. — É como levar a pia da cozinha junto. A não ser que você tenha certeza absoluta de que aonde você vai não tem pia de cozinha. (pág. 200)

sábado, 19 de setembro de 2020

Dupla falta

Título: Dupla falta
Autor: Lionel Shriver
Páginas: 368
 
 O livro será melhor apreciado se o leitor for adepto do tênis. Isso porque muitos termos empregados são específicos do tênis e, mesmo que o desconhecimento não prejudique o entendimento da história, os tenistas poderão apreciar melhor as sutilezas que permeiam o enredo.

 Willy, uma tenista lutando por seu espaço, conhece Eric, também tenista. Algum tempo depois estão casados e, com o passar do tempo, o tênis, fator comum que uniu os dois, logo se tornará a ruína do casal.

 Trechos interessantes:

 — Diz o ditado que [o tênis] é um jogo em que você deve ser inteligente o bastante para se sair bem, e burro o suficiente para acreditar que isso tem alguma importância. (pág. 22)

— Aquele casarão, naquele endereço de Oslo, significa que dinheiro não é problema. Ela não teve permissão para trocar o sofá e a mesa de centro dele. E, quando um homem sem bom gosto ou aparente interesse por decoração faz isso, me leva à conclusão sobre quem domina quem. (pág. 42

Na verdade, Max não lhe ensinava nada de novo. Jogadoras que se especializavam em malícia — bolas curtas, lobs, dissimulações e mudança de ritmo — jogavam tênis feminino à moda antiga, pois o esporte era muitas vezes ganho por meio de trapaças antes do advento das raquetes grandes demais e das mulheres musculosas que gritavam em quadra, como Monica Seles. Entretanto, o padrão, há muito abandonado, adquire vigor. Willy às vezes desconfiava de que a formação que Max lhe dava para transformá-la em um ícone de táticas antigas era um exercício de nostalgia — da época em que mulheres tenistas eram ágeis, flexíveis e engenhosas; e da época em que as mulheres tenistas eram mulheres. (pág. 29)

Willy havia crescido entre inimigos e, de início, via sua generosidade com desconfiança. Se Eric estava tentando lhe arrancar alguma coisa, sentia-se obrigada a evitar que ele conseguisse. E Willy havia desenvolvido o desprezo instintivo que muitas mulheres nutrem em relação á gentileza. Homens que a tratavam com excesso de bondade eram otários. (pág. 54)

Ela ponderou o que Eric, com sua pesquisa meticulosa, já teria confirmado: que embora os dez melhores jogadores do mundo ganhassem 10 milhões de dólares por ano, a curva de lucratividade do tênis caía drasticamente. Entre o 11º e o 25º lugares no ranking, um homem consegui em torno de 1 milhão de dólares por ano; uma mulher, Willy comentou em tom indignado, metade disso. Do 26º ao 75º, a renda anual de um tenista não passava de 200 a 300 mil dólares, embora isso dependesse da permanência do atleta no top 75, e, no tênis, manter sua posição pode esgotar um jogador. No entanto, depois do 125º lugar, não se podia esperar mais de 100 mil dólares anuais, e metade dessa quantia seria gasta em passagens aéreas de classe econômica e cafés da manhã caros em hotéis. Se não alcançassem o top 200, nenhum dos dois conseguiria mais que pagar as contas. (pág. 57)

— “Ler” talvez seja uma palavra digna demais para isso. Mas eu faço uns joguinhos para me distrair. Meu fardo se divide entre aqueles que acham que as vírgulas são paralisações que sucedem um acidente de carro e os que as veem como arabescos decorativos... neste caso, quanto mais, melhor. Portanto, patrocino competições domésticas. Este aqui está ganhando — ele ergueu um trabalho. Marcada por rabiscos vermelhos, a um metro de distância a folha de papel era rosa. — Trinta e cinco vírgulas supérfluas em uma única página. Um recorde. (pág. 83)

 — Ele não era meu amigo, era um parceiro de jogo. Você devia saber a diferença. Bem, ela sabia. O bate-papo decorativo que precedia o jogo, sobre casos amorosos ou o clima, camuflava o caráter utilitário da “amizade” esportiva. Além de uma cerveja após a partida, tolerável somente se o placar não fosse muito discrepante, parceiros de jogo raramente eram convidados a participar de seu círculo social. Pois parceiros de jogo se desgastam. Mas Willy nunca tinha visto alguém consumir tantos parceiros em tão pouco tempo quanto o próprio marido. Ele os mastigava e os cuspia, ingerindo bocados de estratégias ou técnicas ao longo do caminho, assim como comia a carne do frango e deixava os ossos. (pág. 157)

— Não seja ridícula — disse. — É uma grande sorte. Derrotar o 54º vai me dar pontos desde o começo.
— Mas você nunca jogou contra alguém do top 100. Você não tem ideia de quanto eles são bons.
— Willy, são só tenistas. Você às vezes dá a impressão de ser esperta, mas ainda acredita nessa porcaria de aura. Um arrivista carcamano chega ao topo do ranking e você é tomada por uma admiração messiânica. Você acha que jogar contra o 54º é alguma honra. Bom, dane-se. Eles são iguais a nós. Aonde você acha que a gente vai chegar? Ele devia se sentir honrado por jogar contra mim. (pág. 179)

 Na segunda tentativa, Willy estava jogando de maneira fantástica. Todos os espectadores que a abordaram depois concordavam, partilhando de seu ultraje. Como Willy estava numa maré boa, jogava todas as bolas na linha. Mas a diferença entre tênis excelente e tênis podre podia se resumir a um mísero centímetro. Os juízes são capazes de distinguir um do outro, já que a época em que se podia confiar no adversário para decidir o lance de forma justa em nome do espírito esportivo já passara havia muito tempo. (pág. 246)

Ao organizar a agenda de torneios, era necessário decidir se deixaria espaço para um possível sucesso. Satélites ocupavam até três semanas, e requeriam, o mesmo tempo para a inscrição antecipada. Derrotada na primeira rodada, depois de um dia a pessoa ficava a ver navios. A outra opção era presumir que perderia no começo e agendar dois torneios para a mesma época. Mas se o plano era perder não havia razão para se inscrever, para início de conversa. Portanto, como Willy deixava as três semanas de praxe entre um torneio e outro, depois da calamidade ela tinha boa parte do mês à disposição. (pág. 249)

Uma carreira em declínio, ao contrário da que está em ascensão, raramente oferece um evento catártico. O fracasso tende a ser marcado pelo que não acontece. É verdade que algumas vidas têm um divisor de águas: o dia em que o banqueiro é preso por desfalque, a terça-feira de novembro em que o político é derrotado no que seu partido concordara que seria sua última disputa por uma vaga no Senado. Porém, a carreira que afunda devagar, sem um cataclismo cuja ocorrência possa ser analisada por seu administrador, é muito mais comum. Decepções se acumulam — outra promoção negada, uma onda de currículos “arquivados”, o amontoado poeirento de cartões dizendo que “recebemos muitas solicitações este ano”, prêmios de distinção dados a estranhos ou (pior) para algum conhecido, que se não era detestado antes, agora é. (pág. 259)

O bom perdedor é um mentiroso que mostra consideração, que disfarça bem suas verdadeiras emoções e, portanto, poupa a todos do dissabor físico de suas cólicas intestinais, das obscenidades que lhe passam pela cabeça, dos espasmos em seu coração. (pág. 303)

— [...] O tênis não é muito diferente do boxe... é a cabeça que leva as maiores surras. (pág. 335)