Autor: Jorge Lourenço
Páginas: 376
Em 2054 o Rio de Janeiro não é mais o mesmo. Depois de uma guerra
civil, a cidade agora está dividida em Rio Alfa (ou Luzes), onde, é claro,
ficam os privilegiados e Rio Beta (ou Escombros), cujo nome não precisa mais de
detalhes. Todos os moradores da Rio Beta sonham em, um dia, se mudar para a Rio
Alfa. Miguel é uma das exceções. Sem muitas aspirações, prefere ficar por ali e
melhorar as condições de vida nos Escombros.
O livro apresenta uma visão apocalíptica da Cidade Maravilhosa. Os
moradores da Rio Beta são como bárbaros, tentando a todo custo se manter vivos
enquanto a Rio Alfa, controlada por megaempresários, é a visão do paraíso para
todo mundo. Robôs, inteligência artificial, máfia japonesa, gangue de
motoqueiros e muito mais estão presentes na história. Boa leitura.
Trechos interessantes:
Isolados do resto do Brasil e sem visto para deixarem o Rio de
Janeiro, os moradores da Rio Beta tinham poucas opções de ajuda. Ignorados pela
abastada Rio Alfa, eles eram obrigados a lidar com o caos e a falta de comida.
Uma das poucas ajudas que recebiam era a feira de terça, na qual navios
alugados por comerciantes da cidade vizinha de Niterói atracavam no porto para
vender alimentos a preços abaixo do mercado e dentro da realidade da pobreza local.
(pág. 23)
—Não quero ser um contrabandista, Nina. Não sonho em ir pras Luzes.
Nem penso em ir pra lá. Quero juntar dinheiro pra viver bem, e acho que esse
negócio de venda de próteses com o Nicolas pode me dar o suficiente pra ter
algum conforto. —Ele se calou por algum tempo e olhou no fundo dos olhos
esquivos dela. —Seríamos como animais lá, Nina, escravos. Além disso,
estaríamos fazendo parte desse ciclo de dominação.
—Mas a vida é assim. Ou você domina, ou é dominado — ela disse,
desviando do seu olhar e mirando o chão. Desconfiou que Nina estivesse tentando
conter o choro, mas ela continuou a falar. —E você quer viver nessa miséria pra
sempre? A gente vive no cu do mundo, Miguel. O que a gente vive não é nem perto
do que os mais pobres dos mais pobres vivem lá. (pág. 29)
—A vida não acerta nada, Nina. É a gente que aprende a lidar com a
decepção. (pág. 33)
—As pessoas sempre usavam umas às outras em benefício próprio, fosse
no amor ou na guerra, para se confortar ou para se defender. (pág. 76)
Dentro de sua cabeça, um emaranhado de caminhos tortuosos que sempre
passavam por Nina e terminavam em Alice se formou. Sua ex-namorada era como
parte dele, uma extensão de seu corpo sem a qual se sentia desfigurado. O
problema é que, com o tempo, aquela extensão tinha mudado tanto a ponto de não conhecê-la
mais. O que os ligava não era mais o amor, nem a amizade. Da parte dele, a
única esperança que tinha era de que um dia ela voltaria a ser como antes, mas
o que acontecia era exatamente o oposto. A estrada do amadurecimento os levou
para direções opostas, tão distintas que às vezes se sentiam como estranhos um
ao lado do outro. (pág. 104)
—Missão Cristã, hein? Ajudam muito vocês?
—Acho que lá no fundo nós é que ajudamos. Eles se sentem menos
culpados depois de fazer uma ou duas visitas, raramente aparecem mais do que
isso.
—A hipocrisia nunca morre. Essa é a verdade. (pág. 124)
Rotulado como bandido nas ruas pacatas do Andaraí, viu em Miguel o
único amigo que não saiu do seu lado, o único que não julgou suas atitudes. Ele
não concordava com seu novo estilo de vida, mas fazia questão de manter viva a
amizade que conservavam desde pequenos. Era seu irmão, seu pilar e o único em
quem confiava quando a situação apertava. (pág. 175)
[...] Kazuo sentiu que finalmente sua hora tinha chegado. Capaz de
driblar tropas israelenses num ataque a uma embaixada local, assassinar um
membro da SAS no centro de Londres e encurtar a carreira de um senador
americano com uma bala no meio de uma convenção do Partido Democrata, cair para
um grupo de narcotraficantes remelentos com cara de mendigos numa favela que
mais parecia um lixão a céu aberto o revoltava. Trabalhara sempre com a
perspectiva da morte, mas esperava encontrá-la com um pouco mais de glória. (pág.
190)
—Não sei explicar, mas as músicas falam de maneira diferentes comigo.
Uma música romântica parece conversar com minhas paixões. Um rock pesado fala
com a minha rebeldia, minhas frustrações. Algumas, no entanto, parecem dialogar
diretamente com a minha alma. Quando escuto Debussy ou algo mais clássico, é
como se as notas falassem com toda a minha existência. Eu sinto o coração
pesado de admiração. (pág. 204)
—[...] A aceitação de dúvidas e questionamentos é aliada do
conhecimento. Pelo menos essa é a conclusão que tiro da minha base de dados.
Alguém certo da existência de um deus ou de uma inteligência superior, por
exemplo, jamais levaria em conta afirmações contrárias e se fecharia para
aquele tipo de conhecimento. O mesmo serve para o contrário. Um ateu
excessivamente convicto descartaria evidências de eventos sobrenaturais, por
mais claros que eles fossem. A dúvida é aliada do conhecimento. (pág.206)
—[...] Mesmo quem não acredita em macumba tem medo dela. É uma
religião interessante. (pág. 213)
“O Nicolas vivia em cima de um castelo de cartas montado pelas
próprias mentiras, Miguel. E já estava tão no alto que não conseguia mais
descer. Ele mentia para você sobre as próteses, para a Nina, para mim, para os
clientes, até para si próprio. Ele nunca esteve nem aí para ninguém, só para a
ideia fixa de pegar a sua ex-namorada e levá-la numa viagem só de ida para os
Escombros. Ele tinha até um bom objetivo, gostava dela, mas seguia todos os
meios errados”. (pág. 288)
“Você não tem ideia de como as pessoas vivem nas Luzes e no resto do
mundo. Nós vivemos hoje numa sociedade voltada para um bem-estar inalcançável,
sempre atrás de uma felicidade que nunca vem. Trabalhamos em escalas cada vez
mais árduas para manter o status social de um bom emprego, gastamos todo o
nosso dinheiro com coisas que nós não precisamos e esperamos um momento de paz
de espírito que nunca chega, a promessa de sucesso definitivo que nunca é
cumprida. Diariamente, somos bombardeados por uma quantidade tão grande de
informação que nossos cérebros estão entrando em curto”. (pág. 290)
“Como a humanidade é mesquinha”, pensou. “Conseguimos viver nossa
ilusão de segurança normalmente enquanto tem gente passando fome bem do nosso
lado. Atribuímos o bem-estar ao nosso trabalho, ao merecimento ou até à sorte.
E não abrimos mão disso”. (pág.330)