domingo, 26 de novembro de 2017

O filósofo peregrino

Título: O filósofo peregrino
Autor: Marcos Bulcão
Páginas: 374

O livro é um relato de viagem do autor quando percorreu a pé a Via Francígena, uma rota de peregrinos que vai de Canterbury (Inglaterra) até Roma (Itália), numa extensão de aproximadamente 2 mil quilômetros e atravessando quatro países.

A Via Francígena, apesar de antiga, não é tão conhecida como o Caminho de Santiago e poucas são as pessoas que se aventuram a percorrê-la. O relato do autor apresenta mapas, altimetria, fotos e detalhes de todo o percurso, dividido em pequenas etapas. Além dos desafios e dificuldades o livro mostra também as reflexões e devaneios do autor durante o percurso.

Trechos interessantes:

"Muitas vezes as possibilidades que se apresentam diante de nós parecem igualmente boas naquele momento, então decidimos, despreocupados, por aquele caminho em vez daquele outro. Mas o que frequentemente esquecemos é que esses caminhos alternativos não seguem necessariamente 'rotas paralelas' ou próximas, e dificilmente haverá um 'outro dia' para voltar e percorrer aquele caminho - 'contar aquela história' - que se deixou para trás... (pág. 30)

"Quero a vida estável, com mulher e filhos, um trabalho, uma carreira, um papel marcante e reconhecido na sociedade, mas não menos uma vida nômade, com liberdade para ir aonde quiser e no momento em que a sede de novidade sobrevier, sem necessidade de justificar meus atos ou mudanças, de humor ou cidade, país ou profissão, porque eu estaria tão próximo do anonimato quanto possível." (pág. 31)

"Deste modo, o ápice do dia ficou mesmo reservado para a recepção na Abadia de Wisques. Sim, ali fui tratado como um verdadeiro peregrino, no seu mais profundo sentido, desde o primeiro momento em que lá pisei.
De fato, logo que entrei, encontrei um monge, a quem me identifiquei como peregrino. Em total deferência, ele me tomou a mochila das mãos e, antes mesmo que pudesse 'protestar', me pediu que o acompanhasse aos 'meus' aposentos. A caminhada se fez em silêncio. Chegando ao quarto, agradeci-lhe ainda uma vez, ao que ele me disse que passaria mais tarde para me chamar para o jantar." (pág. 56)

"'Acredito em Deus porque meu pai e o pai do meu pai e o pai do pai do meu pai acreditavam.' Como acreditam em Alá os que nascem no Egito ou no Marrocos; como acreditam em Buda ou Confúcio os que nascem na China ou Japão; como acreditavam em Zeus, Hera e Afrodite os gregos do passado; como acreditavam em todo tipo de deuses e entidades sobrenaturais os povos anteriores a eles." (pág. 60)

"De fato, o que está em jogo, verdadeiramente, nesta caminhada? Será que já tenho condições de responder a essa pergunta? Uma primeira tentativa é dizer que ela satisfaz pelo menos dois dos três elementos da minha 'sagrada trindade': amor, conhecimento, esporte/aventura." (pág. 71)

"País, cidade, amigos e família são como peças de roupa no inverno. Sem eles, sente-se frio. E eu quero sentir frio." (pág. 72)

"De um lado nada o obriga a andar, a fazer esse esforço. São os momentos em que a mente diz que a experiência será válida mesmo se você não percorrer todo o trajeto a pé, que você pode selecionar os trajetos mais bonitos para fazer ou, ainda, só andar nos dias em que estiver se sentindo bem e disposto.
De outro lado, há a mente do 'atleta', que insiste para que você prossiga, que diz que não há nada impedindo-o de continuar, que o corpo dá conta do recado, que as dificuldades fazem parte de todo grande feito e que são elas, no final da conta, que tornam grande um feito. De fato, se escalar o Everest fosse fácil, acessível a qualquer pessoa com um pouco de tempo e disposição física, ele não figuraria na lista dos grandes desafios do esporte." (pág. 80)

"Uma lição disso tudo: o 'mínimo' de que precisamos é sempre menos do que inicialmente pensamos. Um valioso aprendizado, ao mesmo tempo, de desprendimento e adaptação." (pág. 85)

"Frequentemente tenho longas conversas comigo mesmo, e sou tão inteligente que algumas vezes não entendo uma palavra do que estou dizendo. [Oscar Wilde]" (pág. 159)

"Uma vez me perguntaram qual o 'público-alvo' deste livro e eu não soube responder. Bem, acho que agora eu sei. 'Meu' público é o dos parágrafos anteriores, é aquele para quem essas palavras fazem algum sentido, despertam questões, pistas e, quem sabe, com alguma sorte, soluções." (pág. 171)

"Tive de responder algumas vezes à pergunta: mas por que decidiu andar de Londres a Roma, percorrer seus quase 2 mil quilômetros? Amigos, parentes e uma infinidade de desconhecidos me fizeram a mesma pergunta. Dei também, a cada momento, uma infinidade de respostas, mas, em geral, sempre tentava 'sofisticar' um pouco as razões: para meditar; colocar os pensamentos em ordem; reganhar perspectiva sobre minha vida; enfim, um modo especial de viajar, conhecer pessoas, paisagens, culturas etc.
É claro que todos esses aspectos são parte da resposta, mas o que percebo também é que uma das grandes motivações para andar esses 2 mil quilômetros, atravessar esses quatro países, foi o amor pela aventura, o desafio. Tal como um maratonista ou alpinista, fui também movido pela ideia de realizar um grande feito atlético, algo grandioso sob qualquer ponto de vista e, ainda assim, viável para minhas condições pessoais. Um modo privilegiado, enfim, de prestar um grande tributo ao esporte." (pág. 234)

"A palavra que transforma é a palavra falada, a palavra ouvida, não tanto a escrita." (pág. 241)

"Tempo... a mais valiosa das commodities, me disse uma vez o sábio Gustavo Queiroz, numa de nossas conversas que valeu mais do que anos de terapia." (pág. 332)

"Algumas pessoas vendem seu tempo em troca de dinheiro, poder, prestígio. Eu frequentemente troquei prestígio, poder e dinheiro por tempo, por mais liberdade de movimento. De fato, na famosa disputa 'tempo vs. carreira', sempre que precisei optei pelo primeiro." (pág. 333)

"De minha parte, e obviamente sem querer confrontá-lo [Monsignor Vercesi] de uma forma mais direta, eu dizia, quase me desculpando, que a promessa de uma vida eterna não representava para mim nenhum grande atrativo. Ao contrário, saber que essa vida, terrestre, terrena, é a única que temos à disposição a valoriza ainda mais, me faz querer fazer dela o máximo possível.
E esse 'máximo', na minha visão, incluía tentar levar uma vida de tolerância e respeito ao próximo, e eu tentava fazer isso - não por medo de punições ou por esperança de recompensas na suposta vida após a morte -, mas sim e sobretudo porque podia perceber que agindo assim a vida ao meu redor ficava necessariamente melhor, mais rica e feliz." (pág. 363/364)

sexta-feira, 17 de novembro de 2017

O segredo da Dinamarca

Título: O segredo da Dinamarca
Autor: Helen Russell
Páginas: 366

Os dinamarqueses são considerados as pessoas mais felizes do mundo. A autora é uma jornalista inglesa que resolveu por à prova esse conceito. Ela resolveu acompanhar o marido que recebera uma proposta de trabalho de uma empresa dinamarquesa e ficar por lá durante 12 meses para descobrir se os dinamarqueses realmente se sentem felizes.

Apesar das dificuldades iniciais - idioma, costumes, falta de amigos, clima - aos poucos foi estabelecendo contato com os dinamarqueses e efetuava a seguinte pergunta: "Numa escala de felicidade de 0 a 10, que nota você daria a si mesma". A maioria esmagadora dos entrevistados concedeu nota 9 ou mais.

Trechos interessantes:

"A ideia de que poderíamos mudar a maneira que vivíamos fervilhava inquieta na minha cabeça, onde antes havia apenas uma aceitação estoica. O projeto Jessica Fletcher parecia, de repente, muito distante, e eu não tinha certeza de que poderia continuar naquele mesmo ritmo por mais trinta anos. Também me ocorreu que desperdiçar metade da nossa vida na expectativa da aposentadoria (embora uma muito boa) beirava ao absurdo e era algo ultrapassado. Eu não era uma serva medieval, arando a terra até cair de exaustão. Eu trabalhava na Londres do século XXI. A vida deveria ser boa. Agradável. Fácil, até. Então, o fato de que eu estava sonhando com a aposentadoria aos 33 anos já era um sinal de que alguma coisa tinha que mudar." (pág. 15/16)

"-Os dinamarqueses não acreditam que comprar mais coisas traga felicidade - disse Christian. -Um carro maior só faz você ter que pagar mais impostos. Uma casa maior só faz você levar mais tempo para acabar a faxina." (pág. 20)

"E fiquei ainda mais chocada quando Christian me disse que os dinamarqueses acreditam tanto que seus filhos estão em segurança que deixam os carrinhos de bebê do lado de fora das casas, dos cafés e dos restaurantes. Parece que eles também  não trancam as bicicletas nas ruas e deixam as janelas das casas abertas. Tudo isso porque a confiança nas outras pessoas, no governo e no sistema como um todo é muito alta." (pág. 22)

"Estávamos indo para o oeste da Escandinávia, a zona rural da Jutlândia, a península da Dinamarca, no extremo norte da Alemanha. A minúscula cidade de Billund, ao sul dessa península, tinha uma população de apenas 6.100 habitantes. Conheço gente que tem mais amigos no Facebook do que isso." (pág. 25)

"-Janeiro na Dinamarca é tempo de ficar em casa, com a família. Ninguém sai muito. Os dinamarqueses ficam 'debaixo das cobertas', literal e metaforicamente falando, de novembro até fevereiro. Então não se surpreenda se você não vir muita gente andando por aí, especialmente nas áreas rurais." (pág. 40)

"-Essas pessoas são os locatários, certo? - pergunto à corretora. -A imobiliária os incentiva de algum modo a fazer uma superfaxina e arrumação antes de começarem a receber visitas?
Ela me olha confusa.
-Faxina? Arrumação? Antes das visitas? É isso que os ingleses fazem? - pergunta ela com uma cara de reprovação. -Os dinamarqueses tentam manter suas casas bem arrumadas o tempo todo." (pág. 46)

-"'Não é necessário mostrar serviço'. Se alguém gosta de bancar a vítima, ficando até tarde ou trabalhando demais, é mais provável que receba um folheto sobre eficiência ou gerenciamento do tempo do que solidariedade.
-Caramba!
Uma mudança e tanto em relação à nossa vida em Londres. Lá, responder um e-mail à meia-noite ou ficar trabalhando até as 20h é considerado uma questão de honra. Mas, na cultura dinamarquesa, isso apenas mostra que você não é capaz de fazer o seu trabalho no tempo certo." (pág. 72/73)

"Existem aproximadamente 80 mil associações na Dinamarca e em torno de 90% dos dinamarqueses são membros de alguma sociedade, e o dinamarquês é, em média membro de 2,8 clubes. Bjarne me fala que eles têm um ditado aqui: 'Quando dois dinamarqueses se encontram eles formam uma associação.'" (pág. 94)

"Uma das razões pela qual os nativos de língua inglesa têm tanta dificuldade com a nossa língua é que a maioria dos dinamarqueses fala inglês. Nós não estamos acostumados a ouvir alguém falar dinamarquês com um sotaque diferente, isso é estranho para nós. Se encontramos um estrangeiro, nós nos habituamos a falar alemão, inglês ou espanhol com ele." (pág. 102)

"-Na Dinamarca, as igrejas simplesmente estão ali para servir os indivíduos - diz Manu. -É como nosso sistema de seguridade social: está ali para o caso de se precisar dele." (pág. 145)

"Tenho ficado tonta com frequência e a toda hora com vontade de tirar uma soneca. E zangada. E dengosa. Pensando bem, estou quase completando a lista dos sete anões." (pág. 205)

"Digo a ele [Bo] que, sempre que compro frutas e legumes aqui na Dinamarca, eles estragam mais depressa do que estou acostumada.
-Isso é porque nós não os enchemos de produtos químicos, o que é muito bom! - me ensina Bo. -Na Dinamarca, preferimos frutas e vegetais frescos." (pág. 245)

"Se estou entendendo direito, os dinamarqueses continuam felizes no inverno porque é tão horroroso do lado de fora que vir para casa provoca uma onda enorme de alívio e gratidão por ter sobrevivido à natureza.
-Então ninguém sai de casa?
-Bem, podemos sair, é claro - admite ele. -Só temos que nos vestir de maneira adequada. Temos um ditado na Dinamarca que é o seguinte: não existe tempo ruim, apenas roupas erradas." (pág. 296)

"-As pessoas pagam seus impostos com prazer na Dinamarca porque sabem que terão a melhor assistência social do mundo. Temos escolas, universidades, médicos, hospitais, tudo de graça, um pagamento automático de férias muito generoso, e os patrões pagam por um bom sistema de aposentadoria que realmente beneficia os dinamarqueses e aqueles que se instalam aqui. A maioria dos dinamarqueses vai precisar dos serviços do Estado em algum momento ou outro da vida, com um membro da família que ficou doente ou algo assim, então compreendem a infraestrutura e sabem que o dinheiro deles está sendo bem usado." (pág. 304)

"-Ter um filho é como ter seu coração do lado de fora do peito - me diz Mãe Americana, e ela tem razão. Quero protegê-lo e fazer com que tudo seja cheio de luz e alegria para ele. O simples fato de ter uma pessoinha perto de mim faz com que eu decida me esforçar ao máximo para tornar o mundo melhor." (pág. 352)

terça-feira, 7 de novembro de 2017

Simples assim

Título: Simples assim
Autor: Martha Medeiros
Páginas: 238

Martha Medeiros é uma das cronistas mais conceituadas do país. E não é para menos, suas crônicas são simplesmente fantásticas, revelando humor, indignação, euforia, entusiasmo, revolta, tudo na medida certa. Qualquer que seja o assunto a ser discutido, ela sempre tem uma palavra afiada e certeira.

Várias são as crônicas do livro que eu considero destaques, mas, duas especificamente chamaram a minha atenção. São crônicas que reforçam a diferença gritante entre o Brasil e os países realmente de primeiro mundo, onde a cidadania está em primeiro lugar, ao invés de lucros e propinas. Para mim, os destaques são: "O galão d'água" e "Simples assim".

Trechos interessantes:

"Da série 'Morro e não vejo tudo': cerca de 200 mil pessoas de mais de 120 países se inscreveram para participar do programa de assentamento em Marte, projeto elaborado pela organização holandesa Mars One. Os brasileiros ficaram em terceiro lugar em número de inscritos - perderam apenas para americanos e chineses." (pág. 11)

"Ele [Bansky] defende o grafite como uma arte honesta e popular. Diz que é uma resposta aos milhares de anúncios publicitários estampados em painéis gigantescos por toda a cidade, inclusive nas laterais dos ônibus: por que todos aceitam que a cidade se desfigure com publicidade e não com o grafite artístico? Ele mesmo responde: porque as pessoas não sabem reagir diante do que não gera lucro." (pág. 27)

"...você não é o que você faz para ganhar dinheiro, você é o que você faz para ser feliz." (pág. 30)

"Não odeio filas porque não odeio nada, mas não é um acontecimento pelo qual eu anseie. Fila, para mim, é a representação máxima da perda de tempo, e tempo é algo que valorizo mais do que pérolas, jades, rubis." (pág. 57/58)

"Pessoas viajam pelo mundo para conhecer monumentos, comer, comprar. A atenção geralmente é voltada para o que se pode fotografar com a câmera e administrar com o bolso. A Tailândia e o Camboja são realmente fotogênicos. Quanto às compras, o mundo virou um supermercado gigante e o que se comercializa lá é vendido aqui também, compra-se mais por impulso do que pela novidade. O que não se globalizou (ainda) é o espírito do lugar, e isso é que verdadeiramente encanta: a reverência que não é submissão, mas respeito. O silêncio que não é timidez, mas educação." (pág. 64)

"Quanto mais se grita e esperneia por aí, mais atenção eu dou aos singulares que brilham em voz baixa."(pág. 116)

"Tudo que dá errado pode dar muito certo. A vida joga os dados, distribui as cartas, gira a roleta: a nós, cabe apenas continuar apostando." (pág. 118)

"Um policial em cada esquina. Nota fiscal entregue em todas as transações comerciais. Lixeiras por toda parte. Ruas bem sinalizadas. Transporte farto, barato e que cumpra horários. Hospitais com vagas dia e noite. Escolas eficientes. Confiança em vez de burocracia. Sinceridade em vez de enrolação. Agilidade em vez de empurrar com a barriga. Se todo mundo concorda que é assim que tem que ser, por que não acontece, quem emperra?" (pág. 141)

"Estava descendo uma ladeira do Chiado, em Lisboa, quando passei por um mendigo. Seria mais um entre tantos que ocupam as calçadas, mas percebi que ele estava cercado de cartazes dizendo que a esmola iria para o uísque, o vinho, a cerveja, a ressaca. Um mendigo engraçadinho. Fiquei observando. Os turistas passavam, riam e distribuíam moedas não por caridade ou desencargo de consciência. Era couvert artístico." (pág. 176)

"Te tornarás só quem tu sempre foste. O que os deuses te dão, dão no começo." [Fernando Pessoa] (pág. 188)

"Uma coisa é se manifestar - inclusive com humor - a fim de pressionar pelo fim da impunidade. Demonstra amadurecimento da população. Mas no momento em que chamamos a presidente de vaca, fazemos brincadeiras sórdidas alusivas ao rosto de Cerveró ou culpamos o PT pelo espirro do cachorro do vizinho trocamos a maturidade da nossa imaginação por um bullying coletivo que mais revela nossa pobreza de espírito do que grandeza como nação." (pág. 206)

quarta-feira, 1 de novembro de 2017

Campo de estrelas

Título: Campo de estrelas
Autor: Thales Guaracy
Páginas: 192

Ivan é um publicitário de 40 anos que descobre a existência de um câncer e procura, de todas as formas possíveis, lutar contra esse mal. Seu pai, Marcial, revela que pretende percorrer o "Caminho de Santiago" e Ivan espera se curar brevemente para acompanhar o pai nessa jornada.

Enquanto isso, Ivan vai relembrando a grande aventura que fizera, junto com o pai, a Machu Picchu. Lembra as dificuldades, as angústias, os mistérios e a recompensa por ter concluído o passeio, apesar de tantas adversidades. Com isso, Ivan vai usando as lembranças da viagem realizada para amenizar os sofrimentos de sua doença, enquanto imagina realizar a nova aventura com o pai.

Trechos interessantes:

"O homem que pregava a racionalidade acima de tudo, que divinizara a força da palavra, acreditara na onipotência do pensamento, dava uma vitoriosa guinada para os caminhos etéreos da mais deslavada religiosidade. A racionalidade é a ilusão dos intelectuais. Sendo um deles, Marcial descobrira que sabia tanto quanto outros com menos estudo, que aceitavam os mistérios da vida sem discussão ou preocupação lógica." (pág. 8)

"-Passei a vida aprendendo nos livros - disse Marcial; enquanto falava, sua voz ia se apagando, até se tornar um murmúrio. -Descobri que o grande aprendizado é com as pessoas." (pág. 10)

"A dramaticidade se acentuava pelo fato de que nunca fora hospitalizado, nem tivera problemas mais grave - na infância, sequer quebrara um braço. Imaginara que adoecer seriamente, andar numa cadeira de rodas ou depender de algum aparelho para viver devia ser insuportável. Porém, sentindo-se ligado à vida somente por aquele canudo incorporado à genitália, dispunha-se a arrastar aquele apêndice para sempre caso necessário. Pela sobrevivência, aceitava até virar terminal de uma garrafa plástica." (pág. 23)

"O efeito mais devastador da doença ocorria na sua cabeça, onde o rato da dúvida roía-lhe a paz. A vida antes era o futuro; de repente, podia ser apenas o passado. A súbita consciência da condição humana lhe caíra como um raio." (pág. 25)

"Lá, numa pequena sala, havia um brasão da República colado na parede, atrás de uma mesa onde repousavam alguns carimbos e uma efígie de Nossa Senhora Aparecida. Aquele era o posto de fronteira da Polícia Federal. Nem isso aliviou Ivan. Se aqueles eram os policiais por ali, imaginava os fora-da-lei." (pág. 35)

"Na Bolívia, como Ivan já pressentira, valia mais que em qualquer outro lugar a máxima de que o ruim sempre pode piorar." (pág. 41)

"Dizem que os cães são capazes de recuperar a consciência de forma imediata. Graças a isso, por exemplo, podem escapar de um atropelamento, passando do sono à ação sem nenhum estágio intermediário, ao sentir no corpo o roçar do pneu." (pág. 52)

"A Bolívia tinha tão poucas cidades importantes que todas se consideravam capitais de alguma coisa. La Paz era a capital política. Oruro ficava sendo a capital cultural. A Santa Cruz coubera o título de capital econômica do país." (pág. 71)

"Antes, quando achava que nada mais tinha a aprender, Ivan acreditava que a humildade era a virtude de quem não tinha outra. Aprendia agora a humildade mais genuína, não ligada à pobreza ou falta de ambição, mas a ensinada pela absoluta necessidade do ser humano do seu semelhante. Ele, que se achara auto-suficiente por tanto tempo, via naquelas circunstâncias quanto dependia dos outros." (pág. 88)

"-Existe um monte de coisa que uns farsantes vendem por aí - disse Roger. -Nada disso garante a cura. Mas, se você quiser tomar o chá, creio que pelo menos não te fará mal.
-E se eu ficar curado?
-Aí você vai dizer que foi o chá, e não o médico, mas tudo bem - disse ele, rindo.' (pág. 122/123)

"Ivan voltou à rotina, mas passou a desfrutar mais do seu bem-estar. A experiência do câncer o modificara. Não estar melhor nem pior do que ninguém já era um privilégio. Dava valor ao simples fato de não precisar ir ao banheiro a todo instante, ou não ter dor ao urinar. Operações do dia-a-dia, antes despercebidas, como o mero ato de respirar, ganhavam nova magnitude." (pág. 139)

"A saúde plena é uma bênção impagável a que se dá o devido valor somente quando a perdemos." (pág. 139)

"A cabeça fazia toda a diferença. Viver pensando na morte é morrer mil vezes todos os dias, tirando o próprio prazer da vida." (pág. 189)