Título: Kuryala: capitão e carajá
Autor: José Mauro de Vasconcelos
Páginas: 336
José Mauro é um dos meus escritores preferidos, pois a maioria de seus livros fala de coisas da minha terra. Seus livros são quase todos ambientados na região Centro-Oeste e região Norte e neles os mesmos personagems se entrelaçam formando uma teia, constituindo-se partes de um grande "todo". As selvas, os rios, os índios, os garimpos, tudo isso é retratado com a linguagem própria da região, criando uma riqueza de detalhes e fazendo o leitor se sentir parte disso tudo.
Este livro é especificamente sobre os índios carajás. Mostra as crenças e tradiçoes desse povo, através do relato de um índio que cresceu para ser o capitão da tribo. Mostra a invasão do homem branco que explora e aproveita-se da vida simples do índio, contribuindo para sua extinção ao introduzir o álcool e as doenças. Mostra também a tristeza e decepção do índio que, devido a uma doença, foi capitão por pouco tempo e foi esquecido e abandonado por todos.
Depos da leitura nos perguntamos: Que é o selvagem: o índio ou o homem branco?
Trechos interessantes:
"-Esqueça-se disso. Tudo isso é muito grande, muito bonito e é dos carajás. Vai demorar muito tempo para que os brancos cheguem por aqui.
-Dizem que os brancos são muitos.
-Mas nem tantos quanto as estrelas do céu." (pág. 24)
"-Dói, sim, filhinho. Todos os homens passam por isso. Um dia também fizeram comigo e meu pai Birirroa também me deitou em seu colo e soprou a minha dor." (pág. 36/37)
"-Meu filho bonito! Meu filho que já é um homem!
Só disse aquilo. E aquilo resumia todo o seu amor e o mistério da sua maternidade. A dor do seu parto. E todos os momentos, todos os dias, todas as suas alegrias, todas as suas angústias. E mormente tudo aquilo que lhe seria roubado no outro dia." (pág. 41)
"-Você ouviu?
-Ouvi. É o nome da jadomã que eu lhe contei.
-É. Nosso filho está ficando homem mais depressa do que a gente pensa. Logo eu preciso viajar com ele. Fazer aquela viagem que meu pai fez comigo e que todos os pais gostam de fazer com os seus filhos." (pág. 59)
"Quanto á barganha com os carajás, aquilo se tornou um bamburro, um negócio rendoso. Pois ali se encontrava o maior e mais rico celeiro de artesanato indígena. Por uma coberta, por uma panela, escolhia aquilo que bem entendesse. Sendo o primeiro descobridor de uma indústria que exploraria sempre os índios mais tarde." (pág. 67)
"-Com a força do Uomã (machado) a gente vai derrubar esse bonito pau de landi. Vamos cortar todos os seus galhos. E ele vai chorar quando cair. Seus galhos grandes vão abraçar os outros paus para não cair. Ele vai gemer até cair. Quando cair com o barulho no chão e se soltar do pequeno tronco aí seu coração morreu e ele não chora mais. Então precisamos cortar todos os seus galhos. Deixar só um grande tronco todo reto. Porque daí vai nascer a sua primeira e bonita canoa, Kury." (pág. 99)
"Mas ao mesmo tempo se perguntava porque o rio ficava tão grande e tão largo no tempo das chuvas. Não queria desrespeitar Kanansiuê que era tão bom e tão amigo. Mas ele e muitos outros índios não sabiam e perguntavam por que Kanansiuê não tinha feito o Bêérokan (Araguaia) diferente. Um lado que descia e outro que subia. Assim ajudava a vida de todo mundo..." (ág. 105)
"A dificuldade em fabricar uma canoa era o que tornava o índio cada vez mais seu amigo. Não tão importante como o seu filho, mas significando muito mais do que seu cão. Um índio podia bater no seu cão amigo, entretanto, jamais maltrataria sua canoa." (pág. 109)
"-Ela nunca vai mandar em você. Quando a mulher gosta do homem que escolheu, nunca manda, você adivinha e faz. Gostar muito é mais bonito do que tudo." (pág. 117)
"Um dos visitantes deixou escapar uma piada trágica.
-Dizem que cearense é que chega primeiro em qualquer parte, pra mim a cachaça chega primeiro." (pág. 169)
"-Será que quando a gente chegar no Xingu vai encontrar os índios assim tão estragados?
-Não. Lá é lugar melhor. Nem todo mundo pode entrar lá. Só os privilegiados. Só as pessoas que interessam. Os índios são fortes, bonitos, bem tratados, estão nus, têm bons dentes... É um ponto de turismo muito preservado. Pra mim, é como se fosse um zoológico para a curiosidade dos civilizados... de certa posse." (pág. 170)
"O homem olhou a enfermeira com raiva e enfiou o chapéu de palha na cabeça. Seus olhos brilhavam como relâmpagos.
-Um dia a senhora paga.
Cuspiu de lado e lançou a praga.
-Um dia a senhora vai arder nas fornalhas do inferno.
Dóttie riu.
-Ih! Moço, eu já estive por lá e não é tão quente assim..." (pág. 236)
"Qualquer branco naquele momento teria se vingado e destamparia um desabafo cruel. Ele, não. Um índio, um selvagem, um bugre, apenas virou as costas para não escutar as palavras de agradecimento. Apenas se apiedara de uma criatura desgraçada e torturada pelos seus semelhantes." (pág. 263/264)
"Veio a lembrança das frases desbocadas de Canário: -na vida, a gente muitas vezes tem que fritar um pedaço de merda para tentar fazer um torresmo..." (pág. 264)
"Índio nunca fora muito de dizer adeus. Adeus só para quem vai viajar numa viagem de sombras, acompanhadas de manlioca, banana e batata-doce. Só quem vai ser enterrado do outro lado do rio, no uabdé de terra, de silêncio e de mistério. Adeus justamente era para se dar a quem nunca mais poderia responder. Só." (pág. 270/271)
"Poderia até perdoar um carajá que vendesse escondido a qualquer branco uma máscara de Aruanã. Se ele precisasse de dinheiro pra comprar remédio para um filho doente ou para cobrir a nudez do corpo da sua mulher e o seu. Esconder a sua vergonha dos brancos. Mas não. Eles venderam as máscaras por Krukujé (cachaça). Por safadeza. Eles levaram as coisas mais sérias de um índio, as coisas mais sagradas, para que tori (branco) risse e caçoasse." (pág. 293)
domingo, 25 de novembro de 2012
sábado, 10 de novembro de 2012
O senhor March
Título: O senhor March
Autor: Geraldine Brooks
Páginas: 304
O senhor March é um capelão do exército americano na Guerra de Secessão (abolicionista por idealismo) convivendo com as agruras da guerra e assolado constantemente pela saudade da mulher e das quatro filhas. No seu ofício reencontra uma escrava que conhecera quando ele era jovem, trazendo-lhe agradáveis lembranças e reafirmando o seu desejo de liberdade para os negros.
A história em si é ótima, mas achei sensacional a ideia por trás do livro: a autora se baseou num clássico da literatura americana (Mulherzinhas, que eu, sinceramente, não conheço, mas pretendo ainda ler um dia) que conta a história de uma mãe e quatro filhas, enquanto o marido está na guerra. Como nada é falado sobre o marido, a autora usou a ideia para romancear a vida do personagem ausente. Fantástico.
Trechos interessantes:
"Escrevo na mesa dobrável que você e as meninas tiveram o carinho de me dar, e, embora tenha derramado e perdido meu estoque de tinta, não se incomode em me enviar mais. Um dos homens me mostrou uma receita engenhosa para um bom substituto deste produto, feito das últimas amoras-pretas da temporada. Graças a ele, posso lhe enviar, neste momento, palavras 'amorosas'!" (pág. 11)
"-Quem me contrataria para corromper as mentes de suas filhas? E, ainda que me contratassem, não domino aquilo que gostaria de ensinar. Não escalei a montanha do conhecimento, mal a toquei. Se galguei certa altura em meu aprendizado, foi apenas como um gavião que encontra uma brisa favorável, que o leva para cima por um momento." (pág. 77)
"Não dormi naquela noite. Embora fosse muito cedo para uma visita matutina, fui à casa dela, sendo recebido por uma carrancuda senhora Mullet - talvez ela soubesse do vestido em estado comprometedor -, e, no devido momento, conduzido até o escritório de seu pai, onde cumpri a formalidade de pedir-lhe aquilo que já tinha tomado." (pág. 102)
"Se um homem deve perder sua fortuna, é bom que já tenha sido pobre antes de adquiri-la, pois a pobreza exige aptidão." (pág.127)
"Se há um tipo de pessoa em quem nunca confiei é alguém que não tem dúvida." (pág. 135)
"Como dizia Heine: 'Não temos a ideia. A ideia é que nos tem... e nos leva à arena para defendê-la como gladiadores, que combatem, queiram ou não." (pág. 139)
"Observei esse detalhe e o registrei como mais uma das injustiças da vida: o homem que já foi rico e perdeu tudo é tratado com mais civilidade do que aquele sujeito que sempre foi pobre." (pág. 142)
"Será que existem duas palavras mais intimamente relacionadas que coragem e covardia? Penso que não existe um homem que não queira possuir a primeira, mas tema ser acusado da segunda. Enquanto uma é considerada o apogeu do caráter de um indivíduo, a outra pode ser vista como o seu nadir." (pág. 185)
"Um lar, ainda que na escravidão, é sempre um lar, e não é fácil abandoná-lo sabendo que tal ato será irrevogável." (pág. 192)
"Um sacrifício como o dele é considerado nobre pelo mundo. Mas o mundo não me ajudará a consertar o que a guerra destruiu." (pág. 230)
"Como era fácil dar conselhos sábios, mas como era difícil segui-los." (pág. 269)
"Apenas lhe peço que entenda que, ao cairmos, a única coisa a fazer é levantar novamente, prosseguindo com a vida que nos aguarda, tentando fazer o bem na medida do possível às pessoas que aparecerem em nosso caminho." (pág. 292)
Autor: Geraldine Brooks
Páginas: 304
O senhor March é um capelão do exército americano na Guerra de Secessão (abolicionista por idealismo) convivendo com as agruras da guerra e assolado constantemente pela saudade da mulher e das quatro filhas. No seu ofício reencontra uma escrava que conhecera quando ele era jovem, trazendo-lhe agradáveis lembranças e reafirmando o seu desejo de liberdade para os negros.
A história em si é ótima, mas achei sensacional a ideia por trás do livro: a autora se baseou num clássico da literatura americana (Mulherzinhas, que eu, sinceramente, não conheço, mas pretendo ainda ler um dia) que conta a história de uma mãe e quatro filhas, enquanto o marido está na guerra. Como nada é falado sobre o marido, a autora usou a ideia para romancear a vida do personagem ausente. Fantástico.
Trechos interessantes:
"Escrevo na mesa dobrável que você e as meninas tiveram o carinho de me dar, e, embora tenha derramado e perdido meu estoque de tinta, não se incomode em me enviar mais. Um dos homens me mostrou uma receita engenhosa para um bom substituto deste produto, feito das últimas amoras-pretas da temporada. Graças a ele, posso lhe enviar, neste momento, palavras 'amorosas'!" (pág. 11)
"-Quem me contrataria para corromper as mentes de suas filhas? E, ainda que me contratassem, não domino aquilo que gostaria de ensinar. Não escalei a montanha do conhecimento, mal a toquei. Se galguei certa altura em meu aprendizado, foi apenas como um gavião que encontra uma brisa favorável, que o leva para cima por um momento." (pág. 77)
"Não dormi naquela noite. Embora fosse muito cedo para uma visita matutina, fui à casa dela, sendo recebido por uma carrancuda senhora Mullet - talvez ela soubesse do vestido em estado comprometedor -, e, no devido momento, conduzido até o escritório de seu pai, onde cumpri a formalidade de pedir-lhe aquilo que já tinha tomado." (pág. 102)
"Se um homem deve perder sua fortuna, é bom que já tenha sido pobre antes de adquiri-la, pois a pobreza exige aptidão." (pág.127)
"Se há um tipo de pessoa em quem nunca confiei é alguém que não tem dúvida." (pág. 135)
"Como dizia Heine: 'Não temos a ideia. A ideia é que nos tem... e nos leva à arena para defendê-la como gladiadores, que combatem, queiram ou não." (pág. 139)
"Observei esse detalhe e o registrei como mais uma das injustiças da vida: o homem que já foi rico e perdeu tudo é tratado com mais civilidade do que aquele sujeito que sempre foi pobre." (pág. 142)
"Será que existem duas palavras mais intimamente relacionadas que coragem e covardia? Penso que não existe um homem que não queira possuir a primeira, mas tema ser acusado da segunda. Enquanto uma é considerada o apogeu do caráter de um indivíduo, a outra pode ser vista como o seu nadir." (pág. 185)
"Um lar, ainda que na escravidão, é sempre um lar, e não é fácil abandoná-lo sabendo que tal ato será irrevogável." (pág. 192)
"Um sacrifício como o dele é considerado nobre pelo mundo. Mas o mundo não me ajudará a consertar o que a guerra destruiu." (pág. 230)
"Como era fácil dar conselhos sábios, mas como era difícil segui-los." (pág. 269)
"Apenas lhe peço que entenda que, ao cairmos, a única coisa a fazer é levantar novamente, prosseguindo com a vida que nos aguarda, tentando fazer o bem na medida do possível às pessoas que aparecerem em nosso caminho." (pág. 292)
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